Paul Klee dizia – não exatamente com essas palavras – que a produção de um artista é sempre o fruto de tudo aquilo que ele viveu como homem e consumiu em termos de arte. A literatura – e, claro, a música também – do rapper Gaël Faye é o resultado da equação mórbida deixada pelo genocídio de Ruanda, sua terra natal, em 1994, e do exílio em Paris, quando ainda era criança. Em Meu Pequeno País, livro de estreia do cantor e publicado no Brasil pela Rádio Londres, encontramos as peças desses (quase) insolúveis traumas.
Narrado do ponto de vista de Gabriel – que quando menino testemunha o desmoronamento do seu país diante da guerra étnica entre tútsis e hútus, ao mesmo tempo em assiste passivamente a sua família ser diluída pelo medo e por questões políticas –, Meu pequeno país trata com sensibilidade e inocência de um tema delicado e, até certo ponto, pouco explorado para além do continente africano. O garoto, à medida em que rememora a tragédia, oferece um retrato fragmentado de si e da História, explorando as possibilidades de construção e reconstrução para um Gabriel que, quando adulto, se tornará um sujeito arredio e desumanizado.
Gaël Faye transforma a dor de uma nação em obra de arte, um espólio pela e para a paz entre os diferentes e os divergentes para que o exílio não seja mais que um elemento histórico.
Se à primeira vista o livro pode parecer um diário íntimo do autor, um acerto de contas ou mesmo uma autoficção memorialística, como fez Primo Levi com É isto um homem?, quando a história avança é perceptível que Meu Pequeno País passeia pelo fino fio da distância e do amadurecimento. Faye navega pelas inúmeras lembranças, mas não se firma nelas: cria um livro que caminha por si só, capaz de ressignificar a realidade dentro dos limites da ficção. É nesse intento que o autor de concentra, mediando as tensões e os recortes de tempo e espaço tal qual fez Picasso com o seu mural Guerra e Paz.
Exílio
Meu Pequeno País parte do todo para o eu, um caminho que pode parecer inverso na literatura ou do cinema, mas que faz todo o sentido dentro do universo de Faye. Logo que os conflitos começam, Gabriel vive as benesses da sua classe social e de ser, naquele recorte, branco – algo que cai por terra assim que pisa na França. Somente quando a guerra chega, literalmente, à sua rua é que o menino se dá conta do que está acontecendo. A partir desse momento, a narrativa se transforma em um dominó e as inúmeras redes de segurança que sustentavam Gabriel rompem até à inevitável realidade.
Os pontos de fuga se reduzem a uma única possibilidade: imigrar para a Europa. O exílio para Gaël Faye, como n’O Jogo da amarelinha, é causa e consequência. Em um momento cuja questão da imigração tem levantado discussões acaloradas, e ainda que Meu Pequeno País traga o tema com certa naturalidade, é impraticável não retomar o debate. É difícil dizer se cabe à Arte propor caminhos, mas é dever do artista problematizar os que já existem.
Voltando à comparação com Cortázar, Horácio Oliveira aproveita a mesma Paris que Gabriel viverá décadas mais tarde. O argentino, como o ruandês, deixou seu país por questões políticas. O que diferencia os dois personagens é justamente como a geografia da cidade opera sobre eles. Se Oliveira vive a capital francesa em sua plenitude, de uma maneira romântica e idealista – como a Paris de Hemingway, por exemplo –, Gabriel busca o caminho contrário: o isolamento, a invisibilidade, o não-lugar. No meio de tudo e todos, quer ser apenas mais um que “atravessou a rua com seu passo tímido”.
Resignação
O ponto de contato entre Oliveira e o Gabriel adulto é a resignação. Ambos sentem saudade de casa, entretanto, jamais poderiam se sentir acolhidos novamente em seus países. É no meio de um temporal, à espera de um dia de sol, que os versos de Dylan – “You don’t need a weather man /To know which way the wind blows” – se encaixam como uma luva.
Dentro de todo esse turbilhão emocional, a chave para a leitura de Meu Pequeno País é a empatia, algo que parece bastante batido, mas que tem sido pouco praticado de verdade no dia a dia. Involuntariamente ou não, Gaël Faye transforma a dor de uma nação em obra de arte, um espólio pela e para a paz entre os diferentes e os divergentes para que o exílio não seja mais que um elemento histórico.
MEU PEQUENO PAÍS | Gaël Faye
Editora: Rádio Londres;
Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.