No livro Na Casa dos Sonhos, a escritora norte-americana Carmen Maria Machado entra numa empreitada perigosa: o de contar a história de um relacionamento abusivo vivenciado pela própria autora. Explico o “perigosa”: talvez poucos assuntos tenham se tornado tão recorrentes na mídia do que os relacionamentos entendidos como abusivos – na maior parte das vezes, de uma forma que faz a experiência deste tipo de relação (ou, pelo menos, a sua tessitura enquanto narrativa) se esvaziar em um rótulo que pouco diz.
O livro de Carmen Maria Machado enfrenta ainda um desafio extra: o de pontuar a toxicidade em um relacionamento LGBTQIA+, em uma abordagem, se não inédita, pelo menos rara – é difícil achar histórias que contem o quanto pessoas do mesmo gênero podem prejudicar o sujeito que amam, ou creem amar. De alguma forma, ela enfrenta um tipo de tabu, uma vez que se permite criar uma representação nociva de sua ex-namorada, alguém pertencente a uma minoria, em plena fase de luta pelos seus direitos.
Mas a boa notícia aqui é que Na Casa dos Sonhos é uma obra magistral, que consegue, como poucas, reconstituir a vivência de quem foi abusado por alguém. Neste sentido, não deve ser encarado como um livro que fala apenas sobre o universo LGBTQIA+ – embora essa temática apareça o tempo todo na obra, especialmente no que tange à intertextualidade com a literatura e com menção a casos reais de pessoas queer.
Carmen Maria Machado traz a matriz da “casa” enquanto metáfora para falar das dinâmicas abusivas enquanto a perda do “lar”, espaço de descanso, que um relacionamento amoroso deveria significar.
Daria para dizer que, embora não se restrinja a esse campo, é nele que a obra encontra o seu motivo de existência, pois tenta apresentar ao leitor uma realidade difícil – o de que pessoas do meio LGBTQIA+ podem ser tão más quanto quaisquer outras. Em entrevista ao portal UOL, a escritora pontuou: “pertencer a essa comunidade não é sinônimo de virtude – é algo neutro em termos de valores”. Na obra, ela descreve a sensação de traição de ser subjugada por alguém do mesmo sexo. “Talvez esta tenha sido a pior parte: o mundo inteiro queria vê-las mortas. Seus corpos sempre foram desprezíveis. Vocês foram arremessadas no navio do mundo, subiram juntas numa tábua de madeira e, depois de um período transitório de prazer e segurança, ela tentou te afogar (…). Você sofre porque foi trapaceada”.
Carmen Maria Machado traz a matriz da “casa” enquanto metáfora para falar das dinâmicas abusivas enquanto a perda do “lar”, espaço de descanso, que um relacionamento amoroso deveria significar. O “ser de casa”, “sentir-se em casa”, são expressões envoltas da sensação de ternura e descanso; no entanto, a casa habilitada pela narradora e sua namorada proporciona tudo menos isso: é um “castelo de cartas”, de base frágil.
Na Casa dos Sonhos tem sido muito incensado pela sua forma. Os capítulos funcionam enquanto notas, como se acompanhássemos um diário em que alguém escrutina suas percepções e análises sobre a sua própria experiência. Em certos momentos, a autora recorre a seus estudos para tentar explicar, de forma dedutiva, o fenômeno que se expressa em sua história – meio como se estivesse escrevendo uma tese de doutorado sobre a própria vida.
Mas a grande riqueza do livro, na minha visão, tem a ver que ela consegue capturar, sem tentar resolver, o maior enigma das relações – o fato de que são um somatório de visões desconexas e jamais poderiam ser descritas por meio de uma narrativa linear. A relação abusiva, portanto, se situa na dificuldade de convencer-se (e consequentemente poder contar a outrem) de que está passando por tudo aquilo. Há , desta forma, o problema de confiar que a sua própria história não é ficção. Carmen é precisa nesse aspecto: “um livro de memórias é, em sua essência, um ato de ressurreição. Quem escreve as próprias memórias recria o passado, reconstrói diálogos. Conjura o significado dos acontecimentos há muito adormecidos (…). Quem escreve uma memória manipula o tempo; ressuscita os mortos”.
Absurdamente tocante, Na Casa dos Sonhos entra na lista dos livros mais fundamentais produzidos sobre este tema – se não o maior. Leitura obrigatória.
NA CASA DOS SONHOS | Carmen Maria Machado
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Ana Guadalupe;
Tamanho: 360 págs.;
Lançamento: Abril, 2021.