O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), de Micheliny Verunschk, é a continuação da novela Aqui, no coração do inferno, investigando a vida pregressa de um garoto de 14 anos preso por um delegado em sua cozinha para escapar do linchamento popular. Nesta sequência narrativa, Micheliny apresenta a trágica história do jovem e sua família.
A princípio, nem o menino, seu irmão, sua mãe ou seu pai têm nomes. Os meninos assistem à degola da mãe e ao linchamento e abandono do pai aos urubus. Depois, são levados pelo bando que matou aos pais a uma Casa-Grande. Lá, recebem nomes: Cristóvão e Gonçalo. Serão lavados, curados de parasitas. Cristóvão é benzido e terá o corpo fechado por uma curandeira. Será iniciado sexualmente e também na arte da caça.
O maior jogo da narrativa é a relação com os nomes, o que pode ou não ser nomeado e o inominável. De acordo com o dicionário, inominável é tanto o que não tem nome como o que é abjeto, vil. O canibalismo é abjeto. Mas na história da poesia brasileira inauguramos a antropofagia. Oswald de Andrade resgata a comilança do Bispo Sardinha pelos caetés para criar um movimento de deglutir o estrangeiro e transformar em linguagem nacional.
A narrativa tramada por Micheliny parece apenas a história de como o inominável se apodera de um coração juvenil. Mas, não: a sacada de colocar o menino como narrador a enriquece brutalmente. O que se vê não são os grunhidos de Fabiano, protagonista de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Apesar de pouco falar, o pensamento de Cristóvão guarda a linguagem arcaica e elegante da tradição oral. Assim, o leitor vê-se de frente com o inominável, também está diante de outra nominação e nomeação. É a tradição oral do sertanejo que reaparece, sem a carga barroca de Guimarães Rosa, mas sim desvendando o linguajar complexo de uma humanidade que não tem acesso à palavra escrita.
“Mas ora, se depois de morta deram um nome para minha mãe, depois nós mesmos, eu e meu irmão, ganhamos nomes que serviam para nos diferenciar um do outro, de nada mais eu duvidava. Pois sim, que assim fosse. Muitos nomes. Bancos, arcas, estrados, catres, esteiras, tamboretes. Corália, Dona Branca, Eu Cristóvão, meu irmão Gonçalo, Didiana. E a capitã. Que fosse assim, então, se assim havia ser a partir daquele dia: cada coisa ao encontro de seu nome, e eu sabendo que ganhar um nome é estar marcado para a morte, como é a caber em sapato que fosse seu apenas por isto, por lhe caber.” (Página 31)
Por que Micheliny continua a narrativa de Cristovão (personagem ainda inominado na primeira narrativa)? E segue, páginas depois, com a história de Laura, a garota que perde a virgindade com o canibal? Seu projeto é uma narrativa em trilogia, e só o entenderemos na totalidade com a finalização. A garota que se ofereceu para ser comida abre as gavetas dos arquivos secretos da ditadura militar. E pertencendo à família de um torturador, prefere entregar a quem cometeu um crime inominável, segundo a crença popular. Há aí a estratégia antropofágica dos modernistas: comer o inimigo antes que ele os coma. Comer o inimigo para apoderar-se de sua vitalidade. Não se trata de conhecer o Brasil profundo, o brasileiro do grotão, já investigado por Graciliano e Euclides da Cunha. E sim de relacioná-lo ao Brasil contemporâneo, aquele onde quem come primeiro escapa da morte.
O Brasil ainda tem que prestar contas de uma violência social inominável, fundamentada na lei da selva, ou dos sertões.
“Nos primeiros séculos do descobrimento, os índios que viviam na região do Recife devoravam fetos abortados. Mas se o nascimento fosse bem-sucedido, as parturientes celebravam comendo o cordão umbilical e a placenta. As mães, em lágrimas, por amor e compaixão, devoravam os cadáveres das crianças mortas precocemente. E as moças que passavam da idade de arranjar um companheiro eram defloradas pelo chefe da tribo, e o sangue do rompimento do hímen era bebido por ele, como sinal da grande honra que estava recebendo.
O professor de história contou do bispo Sardinha, devorado talvez por ter este nome tão apetitoso, e os meus colegas, que estavam como que paralisados por aquele relato tão cru, começaram a rir, primeiro um riso nervoso e tímido e depois um riso quase enlouquecido. Luís olhava para mim com o cento do olho e eu sabia que estava me reprovando.” (Página 104)
O Brasil ainda tem que prestar contas de uma violência social inominável, fundamentada na lei da selva, ou dos sertões. Condenar apenas os criminosos é enxergar a ponta do iceberg – que é também uma pirâmide de gelo, e reflete as relações que a nossa elite tem com a população.
Micheliny Verunschk é autora do romance Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de melhor romance de 2015, na categoria autor estreante acima de 40 anos. Também é autora dos livros Geografia Intima do Deserto (Landy, 2003), O observador e o nada (Edições Bagaço, 2003), A cartografia da noite (Lumme editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em 2004, ao Prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Intima do Deserto. É doutora em Comunicação e Semiótica e Mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
O PESO DO CORAÇÃO DE UM HOMEM | Micheliny Verunschk
Editora: Patuá;
Tamanho: 150 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.