A pandemia transferiu para a realidade um senso de ficção que há tempos não acontecia. E o inverso também é verdadeiro. Nesse jogo de espelhos, em que as vidas são colocadas em risco, qual é o papel da literatura? Talvez, uma tentativa de análise e tradução desse espectro sombrio e inevitável. E é essa urgência – a de transposição do real – que o alicerce para o mais recente romance de Bernardo Carvalho, O último gozo do mundo.
Entre o road book e a distopia, a narrativa acompanha uma professora de sociologia cujo casamento acabou no exato instante em que a quarentena foi decretada. A partir desse desfalecimento, Carvalho cria uma história perturbadora sobre uma terra devastada pós-covid-19. Nessa perspectiva, O último gozo do mundo traz temas que são chave para entender a obra do escritor. Estão ali o mal, a paranoia, a insatisfação e o despertencimento. Como em L’Anomalie, Bernardo Carvalho esmiúça as ruínas dos seus personagens, seres perdidos no tempo e no espaço – como Charlotte e Bob, os dois avatares de Encontros e desencontros. Ao mesmo tempo, junto com Reprodução e Simpatia pelo demônio, O último gozo do mundo forma uma espécie de trilogia involuntária que reflete a ascensão do pensamento conservador que conceberia o cenário perfeito para a atual onda de negacionismo e revisionismo que testemunhamos.
É interessante, e também um choque, imaginar como a literatura é capaz de desdobrar a realidade e apresentar uma dimensão ainda mais desoladora. Como Joca Reiners Terron, que parece ter anunciado o genocídio em A morte e o meteoro, Carvalho parece retratar um futuro sem empatia e amedrontado. Essa dimensão é o solo fértil para a dissolução das identidades e da noção do outro – outro tema que percorre boa parte da sua produção e que ganha um tom mais forte em As iniciais, em que todos se embaralham como que num joguete divino. Estão todos atrás de uma ética particular, uma nova ética, na verdade.
Em O último gozo do mundo, homens e mulheres são habitantes sem nome, que orbitam no mundo em uma natureza animalesca. A professora, enquanto viaja com o filho pequeno – fruto de caso amoroso com um estudante – está em busca de um vidente que perdeu a memória após ser acometido por uma forma grave da coronavírus. Se não lhe cabe mais ser capaz de se encontrar no passado, a única solução possível é enxergar o futuro – redoma que, obviamente, há de se romper.
A realidade brasileira, e de alguns outros países que estão também na vanguarda do retrocesso, parece um universo kafkiano em que luz chega, irremediavelmente, junto com o fim.
Evangelho da devastação
De certa forma, O último gozo do mundo é o corolário de um evangelho da devastação que tem sido abordado na literatura brasileira contemporânea. Daniel Galera, em seu novo livro, O Deus das avencas, coloca em curso uma investigação do mundo pós-colapso. Terron, em O riso dos ratos, que acaba de ser lançado, se propõe a perscrutar a violência como forma de expressão. Em A extinção das abelhas, quase a chegar às livrarias, Natália Borges Polesso cria um cenário distópico para refletir sobre as dissipações das relações. Não é à toa que em uma das passagens mais bem pensadas do livro, Carvalho fale sobre “o fim do mundo travestido de reinauguração”.
O projeto literário de Carvalho sempre se deu através da transição e do trânsito. Sempre houve uma espécie de inquietação em relação ao território – o que rendeu críticas, um tanto estranhas, de que o autor se incomodava por sua condição de brasileiro. Se havia dúvidas quanto à brasilidade em sua obra – se é que essa estética do “bom selvagem” é mesmo relevante –, O último gozo do mundo coloca um ponto final na discussão leviana e burocrática.
A realidade brasileira, e de alguns outros países que estão também na vanguarda do retrocesso, parece um universo kafkiano em que luz chega, irremediavelmente, junto com o fim.
O ÚLTIMO GOZO DO MUNDO | Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Maio, 2021.