Olho nu (Patuá, 2017), de Líria Porto, é um tratado sobre o olhar poético. Olhar para a vida sem o jogo social de disfarces é encontrar a linguagem certeira da poesia. O “olho nu” refere-se uma perspectiva desarmada, mas também, à depuração de linguagem. Esta linguagem enxuta e afiada é a essência da linguagem, e não, como julgam os iniciantes (e não iniciados), imagens e palavras ditas poéticas.
providência
antes que o olhar me apague
visto teu olho nu
curiosa
pupila morava no fundo do globo
mas vinha à superfície
espiar um pouco
O olhar de criança está latente. E o olhar de mulher é o que se constrói e ombreia ao lado do olhar predominante. Em vivências de múltipla identidade, Líria dialoga com autores conterrâneos, como Drummond. Mas seu tom é leve, remonta a memórias de infância:
anjo torto
era bom era engraçado
espalhar depois juntar
as bolinhas de mercúrio
do termômetro quebrado
ou apontar um espelho
para o raio infravermelho
arder os olhos do mundo
pular muro roubar frutas
caminhar dentro da chuva
esquecer o catecismo
surrupiar as moedas
alugar as bicicletas
jogar a alma
no abismo
São frequentes as citações a personagens familiares – mãe, pai, avó – e também a um tempo em que a religião desempenhava função social central. São glosadas hóstias, missa e outros elementos da liturgia religiosa, sem cair no fervor místico ou mitológico à la Guimarães Rosa:
de esguelha
a porta range
e sua voz de taquara
denuncia a chegada
de quem por algum motivo
quis passar despercebido
um amante um larápio
um anjo de chifre e rabo
um espírito de porco
um filho desnaturado
um farsante um estrupício
um remoinho?
Circunscrevendo-se ao círculo familiar, ou das pequenas comunidades, Líria desmonta vários estereótipos com elegância.
Circunscrevendo-se ao círculo familiar, ou das pequenas comunidades, Líria desmonta vários estereótipos com elegância. O bom pai, bom marido, é sua vítima preferida, mas também os tipos que extrapolam e se encaixam no contexto familiar:
desperdício
prima dirce vê a vida
pela fresta
ela adora futebol
e vai à missa
seu pecado foi cheirar
lança-perfume
prima dirce borda borda
mas não pinta
Em oposição a seus familiares e conterrâneos, o olhar de Líria Porto é mais aguçado e irônico:
diva
algo de bette davis
talvez aquele olhar de mulher capaz de tudo
de matar de morrer
de esmagar baratas
A poeta não teme o enfrentamento do outro. Seja este outro humano, homem, monstro, entidade ou vampiro:
olhos cor de mostarda
À porta um sobressalto
por aquele homem eu não esperava
ao fitar-lhe os olhos percebi
vai querer ser dono
de minha alma
em legítima defesa eu lhe disse
a mulher que em mim procuras
não existe
nunca mais o vi
mas para assegurar-me comprei cruz
balas de prata cabeças d´alho
estaca
E é também com humor que a poeta retrata a humanidade, que só se incomoda com o que lhe perturba em seu próprio quintal:
ponto de vista
uma partícula
um cisco
nada teria importância
se não tivesse caído
em meu olho
Líria Porto (Araguari/MG) é autora dos livros Borboleta Desfolhada e De Lua, publicados em Portugal em 2009, Asa de Passarinho e Garimpo (finalista do prêmio Jabuti – poesia – 2015) pela Editora Lê, Cadela Prateada, publicado pela Editora Penalux em 2016, e do blogue Tanto Mar. Participou das antologias Dedo de Moça – Escritoras Suicidas e Cartas Embaralhadas, organizada pelo escritor Leonel Prata. Tem poemas publicados em vários jornais, revistas e sites.
OLHO NU | Líria Porto
Editora: Patuá;
Tamanho: 140 págs.;
Lançamento: Novembro, 2017.