“Olhos d’água” é o conto-guia neste livro, homônimo, que enfeixa 15 histórias curtas. Nestas narrativas, a maioria das personagens são mulheres negras. A morte, a violência urbana, a pobreza, a gravidez precoce, a prostituição são situações cotidianas para estas personagens. Não à toa, a narradora do conto-guia “esquece” a cor dos olhos de sua mãe:
“Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo… Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela… Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lavalava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela.”
A pobreza, a fome, a melancolia, tudo é denunciado sob a cor poética. Já crescida, a narradora descobre as lágrimas, os olhos rios caudalosos sobre a face. A dor é serena sob a tristeza das águas de correnteza. A mãe desta narradora anônima torna-se a matriarca de todas as outras personagens: a mulher de bandido Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Luamanda, Cida, a menina Zaíta, Maria, Natalina. Todas atravessadas cotidianamente pela violência e pela morte.
Ao leitor menos preparado, a violência narrada por Evaristo em Olhos d’água lembra os contos cortantes de Rubem Fonseca, aquele que foi um crítico social ácido em Feliz ano novo e A coleira do cão. Embora a violência seja um dos temas em ambos – e Evaristo tem tanta força narrativa e densidade na composição de personagens quanto Rubem -, para a mineira, não se torna um elemento estético. Aqui se ecoa a voz das minorias sociais, que insistem na ideia de que quando os autores de ficção relatam suas vivências diferenciam dos autores do cânone literário. Há uma diferença abissal no registro da emoção.
Aqui se ecoa a voz das minorias sociais, que insistem na ideia de que quando os autores de ficção relatam suas vivências diferenciam dos autores do cânone literário.
O talento da autora permite criar não apenas nomes poéticos, como também cenas entremeadas de lirismo. Os contos que abrem e fecham o volume, “Olhos d´água” e “Ayoluwa, a alegria de nosso povo”, são guias da fortaleza do povo negro. A capacidade de suportar a miséria com alegria, a superação da pobreza, da discriminação e da repressão. O espírito de superação não apaga o racismo sofrido por escritores negros como Lima Barreto e Cruz e Souza, Carolina de Jesus e Gilka Machado. O racismo que impediu tais escritores terem seus talentos reconhecidos como o embranquecido Machado de Assis.
Uma das forças de superação é a afirmação da identidade, o resgate da ancestralidade. Este resgate é feito na escolha dos nomes dos personagens, homenagem aos antepassados africanos. Duzu-Querença, Luamanda, Dorvir. A outra é a criação de imagens justapostas, através de palavras-valise: “peitos-maçãs”; “gozo-pranto”; “flor-criança”; “borboleta-menina”, “dedos-desejos”; “ave-mãe”; “corpo-coração”, “gozo-dor”; “barrigas-luas”, “águas-lágrimas”, “dança-amor” e “buraco-perna”; “alma-menina”; “figurinha-flor”; “quarto-marquise”; “coragem-desespero”; “verdades-mentiras” e “peito-coração”, imagem-mulher” e “imagem-homem”; “rio-mar”; “fumacinha-menina”, “mar-amor” e “mundo-canal”; “mar-amar” e “mar-morrente”, listadas por Adélcio de Souza Cruz, em artigo de análise para o jornal mineiro O Tempo.
Conceição Evaristo nasceu numa favela da zona sul de Belo Horizonte. Conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica, até concluir o curso Normal, em 1971, já aos 25 anos. Mudou para o Rio de Janeiro, onde passou num concurso público para o Magistério e estudou Letras na UFRJ. Estreou na literatura em 1980, publicando na série Cadernos Negros, organizados pela Grupo Quilombhoje. É Mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. O romance Ponciá Vicêncio (2003) foi publicada nos Estados Unidos em 2007. O romance Becos da memória foi traduzido para o francês em 2006. Poemas de recordação e outros movimentos (Nandyala, 2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Histórias de leves enganos e parecenças (2014).
OLHOS D’ÁGUA | Conceição Evaristo
Editora: Pallas;
Tamanho: 118 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2014.