O que faz um pai? Sabemos, pelo menos desde Freud, que a figura do pai é introjetada em nosso inconsciente de maneira inexpurgável: todos nós o temos internamente, ainda que não o conheçamos ou o desprezemos. E nossos caminhos da vida são ditados por essa figura magnânima por excelência. O belíssimo Pai, Pai, do escritor João Silvério Trevisan, abre com uma frase impactante: “tudo que meu pai me deu foi um espermatozoide”. Parafraseando o título da obra seminal de Andrew Solomon, trata-se da história de um fruto que caiu longe da árvore. Ainda assim, João busca o que talvez seja uma missão impossível: encontrar dentro de si algum tipo de paz com o pai, já morto.
Nesta empreitada, Trevisan nos presenteia como uma espécie de autobiografia que se estende para bem além das questões entre pai e filho. Sua escrita poética e contundente nos leva de volta à sua infância em Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, como fruto de uma família pobre em que o pai, alcoólatra, navegava pela negligência familiar enquanto a mãe segurava as pontas com os quatro filhos. O pequeno João acaba indo para um seminário como forma de fugir àquela realidade, sem ainda saber que o seu mundo percorreria a trilha tortuosa da arte.
Foi no cinema e na literatura, inicialmente, que a criança encontrou algum conforto. Em um filme de John Ford, ele se identifica com a história de um menino que apanha e sofre injustiças. “Ou seja: havia mais meninos, além de mim, que apanhavam sem entender. E apareciam nos filmes. A identificação me trouxe alívio”, registra em Pai, Pai.
É um passeio que nos leva ao fundo do sentimento da solidão do próprio autor, que encontra consonância em boa parte da experiência de tantos viventes que passaram por esta terra. “O choro mais crucial que conheço é o da solidão. (…) O choro de solidão é o mais parecido ao de uma criança, pois revela uma consciência brutal do desamparo ante o exílio do próprio viver – órfão, sem eira nem beira”.
João Silvério Trevisan tece aqui um romance de formação particularmente comovente, retratando a vida de alguém que consegue construir um mundo possível para si a partir das linguagens artísticas
Ou seja, João Silvério Trevisan tece aqui um romance de formação particularmente comovente, retratando a vida de alguém que consegue construir um mundo possível para si a partir das linguagens artísticas. É apenas assim que a criança que ainda habita João, hoje com 79 anos, pode sobreviver à tristeza que o assolava.
E a riqueza aqui é notar o quanto a sua trajetória enquanto indivíduo atravessa – tal como é atravessada – pelos fatos históricos que assolavam o Brasil e o mundo. No seminário, o adolescente compreende aos poucos sua homossexualidade (mais tarde, ele se tornaria um protagonista entre a comunidade LGBTQIA+) e vivenciaria experiências marcantes, como a produção de obras impactantes que foram censuradas na época da ditadura, fazendo com que o autor tivesse que deixar o país.
Da tristeza ao perdão
Talvez um dos grandes temas da obra biográfica deste escritor seja o questionamento: é possível ser um artista sem dor? Uma discussão tangencial trazida aqui – e que, de certa forma, é retomada no livro que complementa este, Meu Irmão, Eu Mesmo – é que mergulhar no universo da dor é o que talvez tenha possibilitado que João desenvolvesse sua sensibilidade e vivido uma vida gloriosa.
Mas João sabe que a vida familiar, contudo, é pano de fundo indissociável da vida de qualquer ser humano (não por acaso, o escritor revela ter feito terapia, inclusive psicanalítica, na maior parte da sua vida). Por isso, não há como desvencilhar-se do pai e da mãe. E esta obra, como já apontada no título, é uma espécie de prestação de contas com o progenitor, um homem bruto e fracassado, que deixa de herança ao filho uma postura torta e falha do que significa a masculinidade.
A beleza de Pai, Pai é notar que João vai se reconciliando com seu pai ao longo das páginas, olhando para o sujeito violento de maneira empática. Ele o descreve em suas fragilidades: “passou a vida em meio aos tijolos de medo, levantando casas de medo dentro de si. Seu medo produziu tanta coisa medrosa. Inclusive filhos como eu. Sua existência foi um longo aprendizado no medo”.
Ou seja, o relato deste grande escritor parte de sua angústia inerente para chegar aos poucos na potência do amor, trazida de tantas formas para a sua vida – seja pelo amor erótico, o amor fraternal, o amor incondicional pelo sobrinho. “Graças a essa longa prática de amar em êxtase, ouso considerar o amor um bálsamo, apesar de tudo. Porque mesmo quando interdito, o amor traz em si mesmo, de um modo ou outro, algum antídoto contra a dor”.
E é justamente nesta dor do filho abandonado que João encontra as palavras para dizer ao sujeito que lhe deu a vida: “o amor é um pássaro de asas quebradas, pai. E eu preciso cuidar dele”. De forma absolutamente generosa e comovente, João Silvério Trevisan compartilha a sua vida com o leitor e consegue o levar às lágrimas ao se sentir abraçado por um eterno menino que soube partir das adversidades para criar poesia.
PAI, PAI | João Silvério Trevisan
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 252 págs.;
Lançamento: Setembro, 2017.
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