A epígrafe de Paixão Simples (editora Fósforo, 2023, tradução de Marília Garcia), livro de Annie Ernaux, já dá pistas sobre o seu conteúdo. É um excerto do clássico Fragmentos de Um Discurso Amoroso, obra do semioticista francês Roland Barthes, que diz: “Nous deux – a revista – é mais obscena que Sade“. Nous deux era uma publicação francesa de fotonovelas melosas.
De forma sugestiva, Ernaux escolhe o trecho para nos entregar que nessa obra – que segue com a marca do seu estilo conciso e pungente – vai nos falar sobre o caráter ridículo e cego da paixão, uma experiência praticamente universal. Publicado inicialmente em 1991, Paixão Simples se une à seara dos textos que falam dos amores rasgados e desprovidos de lógica, que desestruturam a estabilidade mesmo dos que se consideram acima disso.
Tal como a mulher destruída em “Olhos no Olhos”, de Chico Buarque (aquela do “quando você me deixou, meu bem/ me disse pra ser feliz e passar bem/ quis morrer de ciúme, quase enlouqueci”), Annie Ernaux se despe aqui da vergonha de viver sensações consideradas baixas, como a de organizar toda uma rotina para ficar à espera do sujeito amado, que só aparece quando quer.
Ainda que seja sempre uma tarefa impossível tentar explicar de maneira lógica o que seria a paixão, o talento da escritora está justamente na busca por uma transposição em verbo daquilo que não se pode dizer.
Trata-se, vale dizer, de uma espécie de amor ridículo, já que Ernaux narra a sua entrega a um homem casado, chamado de A. – o romance, portanto, não tem grandes condições de prosperar. O objeto de seu desejo é o próprio amor, mais do que a pessoa em si, que se torna imaginada. Ela registra: “nunca mais vou ver aquele homem. Mas é essa volta, irreal, quase inexistente, que confere todo o sentido à minha paixão, que é o de não ter sentido, de ter sido, durante dois anos, a realidade mais intensa possível e a menos explicável”.
O livro parece nos mostrar que, mesmo que estejamos diante de uma grande escritora – e, por isso, vocacionada à tradução do mundo pelas palavras – o sentimento gerado por uma paixão arrebatadora sempre flerta com o indizível. Ernaux escreve: “não quero explicar minha paixão – o que me levaria a considerá-la um erro ou um transtorno do qual seria preciso me justificar -, só quero mostrar o que ela é”. E até os sentimentos ridículos merecem ter sua existência dignificada.
O amor e o sofrimento
Ainda que seja sempre uma tarefa impossível tentar explicar de maneira lógica o que seria a paixão, o talento da escritora está justamente na busca por uma transposição em verbo daquilo que não se pode dizer. A narrativa se estende, de maneira crua e muito sincera, para uma explicação de fácil identificação sobre os sofrimentos carregados por aquele que se apaixonou.
É praticamente impossível expressar essa dor sem ficar à mercê dos julgamentos. Ainda assim, do alto de sua franqueza enquanto escritora, Annie Ernaux se expõe em trechos como esse: “uma noite, fui tomada pela vontade de fazer um exame de HIV: ‘Pelo menos isso ele teria deixado em mim'”. O tormento causado pela paixão, ela esclarece, carrega uma espécie de semente da não existência, como se nada além daquele sentimento pudesse prosperar.
Mesmo que essa seja uma obra curta (marca irrevogável da autora francesa), ela é também pungente e capaz de tocar nessa ferida universal que é conhecer o sabor de entregar-se à paixão – um dos sentimentos mais prazerosos da vida, mas que cobra o preço alto do desinteresse por tudo o mais. Annie Ernaux consegue aqui, tal como faz em seus demais livros, aproximar essa experiência ao âmago da literatura, que busca justamente por em palavras aquilo que não cabe nelas.
É um trabalho de Sísifo, sempre fadado a ser incompleto. Ainda assim, merece ser feito. É nesse sentido que, por fim, Annie Ernaux se pergunta sobre as razões pelas quais escreveu sobre essa paixão simples: “fico me perguntando se, na verdade, não escrevo para saber se os outros fizeram ou sentiram as mesmas coisas que eu, ou então para que achem normal senti-las. E até mesmo para que as vivam, por sua vez, sem lembrar que um dia leram em certo lugar alguma coisa sobre ao assunto”.
PAIXÃO SIMPLES | Annie Ernaux
Editora: Fósforo;
Tradução: Marília Garcia;
Tamanho: 64 págs.;
Lançamento: Abril, 2023.
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