O livro Peitos e Ovos (editora Intrínseca, 2023; tradução de Eunice Suenaga), da autora japonesa Mieko Kawakami, é mais uma obra que se insere em um terreno cada vez mais profícuo: as obras que exploram nuances da subjetividade das mulheres. E faz isso pisando em uma das searas mais delicadas, que é a discussão das relações com o próprio corpo e com o seu (potencial) uso para a maternidade.
Isso se dá por meio de uma história algo confusa (pois demora para haver exatamente um foco para a narrativa), mas interessante. Na primeira parte do livro, conhecemos Natsu, a narradora do livro. Ela vive em Tóquio e recebe um dia a visita da irmã mais velha, Makiko, e sua filha adolescente, Midoriko, que está sem falar há alguns meses.
A matéria-prima de Peitos e Ovos, ao menos nesta primeira seção, está na abordagem crua e carregada de comentário social sobre o relacionamento dessas mulheres. Makiko e Natsu foram criadas pela mãe e pela avó, ambas já falecidas. As irmãs são nascidas de um relacionamento abusivo e sempre compartilharam de uma existência na pobreza, cercada de muito trabalho precário e mal remunerado.
É neste contexto que Midoriko vive seu sofrimento – exposto ao leitor apenas eventualmente, em páginas do seu diário. É difícil suportar que sua vida é mais um peso para uma mãe que já rala todos os dias para que ambas possam sobreviver.
Ao mesmo tempo, Makiko vai a Tóquio com um objetivo específico: quer aumentar os seios, os quais considera minúsculos e com os mamilos muito escuros. O interesse causa espanto em Natsu, a narradora da história, para quem a relação com o próprio corpo é praticamente inexistente (ela não sabe nem dizer como são os próprios seios).
A inquietação é trazida o tempo todo em uma discussão simples, mas dura: uma mulher pobre como Makiko teria o direito de desejar um corpo diferente? E o que significa a uma mulher esta reivindicação por possuir o próprio corpo?
O corpo, os ovos e a maternidade
A segunda parte do livro poderia ser entendida como uma obra à parte, não fosse o fato de trazer as mesmas personagens. Oito anos depois, Natsu, que era uma aspirante a escritora, finalmente consegue publicar um livro e fazer algum sucesso. Ela agora vive de literatura, e faz pequenos trabalhos para editoras, enquanto não escreve o seu esperado romance.
Com dificuldade para produzir, ela tem uma rotina solitária, mas convive eventualmente com outras mulheres do mesmo âmbito intelectual. Mas uma questão se torna cada mais latejante em sua vida: a ideia de que há uma janela de tempo limitada para que ela decida se vai querer ou não ser mãe.
Natsu passa a pensar cada vez mais nisso, mas se vê às voltas de seus dilemas. Para começar, ela não tem um companheiro e não suporta a sensação provocada pelo sexo com outras pessoas. Desenha-se na sua mente uma nova obsessão, que diz respeito a uma possível gravidez por meio de uma doação anônima de esperma (que, segundo consta no livro, não é permitida no Japão para mulheres solteiras).
A cultuada obra de Mieko Kawakami causa impacto por uma certa estranheza que é trazida por meio da narrativa algo “seca” sobre temas que, muitas vezes, são tratados de forma mais carregada emocionalmente.
A partir daí, Kawakami aprofunda-se numa reflexão ética sobre o que significa trazer uma criança ao mundo. Para complexificar a questão no livro, Natsu cruza com uma associação de pessoas que foram geradas por meio de sêmen de doador anônimo (IAD), e que hoje enfrentam sérios sofrimentos emocionais por causa dessa decisão da mãe ou dos pais.
A cultuada obra de Mieko Kawakami causa impacto por uma certa estranheza que é trazida a partir desta narrativa meio “seca” sobre temas que, muitas vezes, são tratados de forma mais carregada emocionalmente. A narradora criada pela autora traduz uma existência em um mundo quase habitado apenas por mulheres, em que seus corpos são abordados não pela via do apelo sexual, mas pela própria materialidade.
Ao invés da idealização dourada da maternidade, há, em Peitos e Ovos, uma espécie de “antirromantismo” sobre a possibilidade feminina de geração de descendentes. Natsu passa a desejar um filho, mas não sabe explicar exatamente o porquê, e nem parece ter tanta convicção disso (talvez seja apenas um plano de uma pessoa solitária).
Por outro lado, há mulheres em sua volta que, para ela, parecem culpar a prole pela vida que não tiveram, ou então que recomendam, por argumentos arrogantes, que ninguém tenha filhos (“escritores grandiosos não tem filhos”, diz, em certo momento, a editora de Natsu).
É um dilema importante abordado de forma meio ríspida pela literatura de Mieko Kawakami – o que, vale dizer, conta como um ponto de qualidade aqui. Ainda que, em certo momento, o livro apresente algum problema de ritmo (dando a sensação de que poderia ser mais curto do que é, e trazendo algumas cenas – como um estranho encontro entre Natsu com o pai – que ficam perdidas), esta é uma obra que vale a pena ser lida justamente pelo incômodo que causa.
Em um momento em que a reprodução humana é encarada cada vez mais em termos tecnológicos (vide, por exemplo, a indústria lucrativa e asséptica do parto que é mostrada na série Gêmeas – Mórbida Semelhança), Mieko Kawakami provoca seus leitores a compreender a dura existência das mulheres a partir da órbita criada por dois eixos: os “peitos” (as pressões estéticas que elas sofrem, e que trazem pouquíssimos benefícios às suas vidas) e os “ovos” que elas são capazes de replicar no mundo.
Peitos e Ovos | Mieko Kawakami
Editora: Intrínseca;
Tradução: Eunice Suenaga;
Tamanho: 480 págs.;
Lançamento: Abril, 2023.
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