Em São Paulo, vereadores votaram a favor de um projeto que visa aplicar multas em quem distribui alimentos para a população de situação de rua, sujando as calçadas e atrapalhando o tráfego. Em âmbito nacional, deputados articulam uma lei que visa prender mulheres que fizerem aborto a partir de certa etapa de gestação. Aparentemente sem relação, os exemplos vem à mente ao ler Puro (editora Todavia, 2024), o incômodo romance da escritora mineira Nara Vidal – que, embora situado na década de 1930, soa como se estivesse falando do presente.
A década escolhida para o romance não é aleatória, pois há uma conexão com um discurso circulante nesta época (e será que apenas nela?), que defendia para o país uma visão científica baseada na eugenia. Ou seja: para muitos intelectuais, havia a convicção de que o Brasil só iria para a frente à medida que se purificasse sua raça e abolisse a mestiçagem. Para ilustrar, basta lembrar da popularidade do personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato (um eugenista convicto), que se tratava de um brasileiro preguiçoso justamente por não ser “puro” como um europeu.
Os desdobramentos dessa história vão se revelando habilmente pelo fio tecido por Nara Vidal, capaz de costurar um “romance teatral” em que a visualidade se torna uma peça chave.
Nara Vidal parte de todo esse contexto para compartilhar uma história curta e perturbadora que se passa na fictícia cidade de Santa Graça, um vilarejo no interior de Minas Gerais que se vê como “referência de virtude e limpeza no território nacional”. É lá que vivem os personagens construídos de maneira simbólica por Nara, em um formato que lembra um roteiro de teatro. Nada está em excesso ali: cada um deles representa um elemento do horror velado que circula na pequena cidade.
Dentre eles, estão três mulheres velhas que criam um menino surpreendentemente branco que encontraram na rua, um padre, um prefeito, um médico, uma empregada negra, um menino deficiente e uma enfermeira misteriosa. Concretizando a metáfora polifônica apresentada por Mikhail Bakhtin, pode-se dizer que cada um fala conforme seus interesses, sem que suas vozes estejam amarradas a um único fio condutor. Assim, mergulhamos na lógica e nos pensamentos perturbadores dos racistas, mas também dos estigmatizados.
Os elementos mais importantes nessa trama talvez sejam três. O primeiro é o adolescente Lázaro, que foi adotado por três velhas que cozinham sem parar e admiram-se pela sorte de terem encontrado um menino tão branquinho. Ele sonha em ser prefeito e tem ojeriza pelos que são inferiores, diferente dele. Do outro lado, o irmão do prefeito amargura a infelicidade de ter tido um filho “que só sabe cair e babar”, chamado Ícaro. Há uma triangulação por fim com Íris, a empregada negra que serve aos patrões brancos ao mesmo em que se nutre de ódio – tanto pelo jeito que a tratam, quanto pelo fato de que perdeu seu filho Joaquim em uma cirurgia de apêndice realizada pelo médico da cidade, o doutor Lírio.
Um romance teatral com toques de terror
Os desdobramentos dessa história vão se revelando habilmente pelo fio tecido por Nara Vidal, capaz de costurar um “romance teatral” em que a visualidade se torna uma peça chave. Vamos aos poucos nos sentindo como se estivéssemos dentro de Santa Graça e vivenciando uma angústia crescente estimulada por uma tensão suspensa no ar, que diz respeito ao desaparecimento de “negrinhos” filhos das pessoas mais pobres da região.
Puro se inicia com a sensação de roteiro enquanto envereda para outros gêneros, podendo ser incluído no ramo da literatura de horror. Há elementos sobrenaturais, apresentados em cenas lúgubres, que vão escalando à medida que a narrativa avança, fazendo com que o leitor não consiga largar a obra.
Contudo, é difícil talvez pontuar o que assusta mais aqui: o terror que se sobressai à história ou o fato de que ela soa perturbadamente real e próxima do que estamos vivendo. Sem dúvida, estamos diante de uma obra imperdível.
PURO | Nara Vidal
Editora: Todavia;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Abril, 2024.
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