O ideal seria começar dizendo que meu primeiro contato com a obra de John Steinbeck foi numa aula de literatura americana ou assistindo ao excelente As Vinhas da Ira (1940), dirigido pelo John Ford. Seria mais chique, mas a verdade é que só fui saber que o vencedor do Nobel de Literatura de 1962 existia assistindo à série Lost. Pois é, o Sawyer vivia pra lá e pra cá com esse livrinho e despertava a curiosidade de meio mundo: será que haveria ali as respostas para os segredos da ilha e da Iniciativa Dharma? Ok, a gente descobriu que não muito mas, pelo menos, aquele título Ratos e Homens permaneceu na memória, o que talvez compense todo o tempo perdido com as teorias da conspiração.
A história é bem curtinha, porém é muito poderosa e fala sobre dois amigos tentando conseguir emprego em fazendas da Califórnia, durante a recessão econômica dos anos 30, mesmo período em que se passa O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers, que também aborda os impactos sociais naquela década. George é um sujeito baixinho e muito sagaz, já Lennie é um grandalhão bastante sensível que sofre de problemas mentais. Há entre os dois uma profunda relação de amizade e proteção, já que George se sente responsável por Lennie, uma vez que este, mesmo sendo muito forte, não teria condições de se virar sozinho num mundo que passa por um profundo colapso econômico e onde a disputa por emprego é extremamente acirrada.
Chega a impressionar a forma como Steinbeck consegue desenvolver rapidamente os personagens, mesmo alguns secundários, de modo a dar-lhes profundidade psicológica e estabelecer um panorama bastante seco das condições da época.
Quando o livro começa, eles acabaram de abandonar uma dessas fazendas, por motivos que só ficamos sabendo depois, e partem para um novo emprego, numa propriedade onde encontrarão outros trabalhadores submetidos a condições precárias (o fato de a palavra “rato” vir antes de “homens”, no título do livro, não é aleatório), num clima de disputa e de segregação.
Chega a impressionar a forma como Steinbeck consegue desenvolver rapidamente os personagens, mesmo alguns secundários, de modo a dar-lhes profundidade psicológica e estabelecer um panorama bastante seco das condições da época. Por exemplo, quando os protagonistas chegam nas novas acomodações, ouvem o seguinte diálogo entre os funcionários da fazenda:
“- Eu queria te perguntá, Slim… Cadê a tua cadela? Ela num tava debaixo da tua carroça hoje de manhã.
– Ela deu cria ontem à noite – Slim respondeu. – Nove. Afoguei quatro na mesma hora. Ela num ia conseguir criá todos”.
Só com esse trecho curtinho já podemos perceber alguns elementos interessantes a respeito do estilo de Steinbeck. Primeiramente repare que, mesmo escrevendo de forma bastante curta e direta, o autor prepara o terreno para que imagem violenta surja de forma inesperada e impactante. Isso ocorre por causa das pausas, já que ele parte de uma informação trivial “Ela deu cria ontem à noite” (pausa), seguida de uma informação ainda mais simples e significativa “Nove” (outra pausa, e aqui a quantidade potencializa o impacto do que vem a seguir) e na sequência o tiro de bazuca na cara do leitor: “afoguei quatro na mesma hora”. Mais adiante, uma espécie de atenuante: “Ela num ia conseguir criá todos”, pois aos olhos do personagem não foi uma atitude cruel, foi apenas uma atitude sensata.
Veja, tratam-se de duas míseras linhas que nos apresentam dimensões bastante perturbadoras a respeito daquelas pessoas, das condições em que elas vivem, bem como de um sentimento de desesperança que permeia aquilo tudo, já que no fundo todos aqueles homens solitários estão largados no mundo tal qual um cachorro cuja mãe não conseguiu criar. Como não foram afogados, seguem em frente.
Outro aspecto importante é obviamente a linguagem marcada pela oralidade (preservada/adaptada pela boa tradução feita por Ana Ban), uma vez que pode-se imaginar que o autor pretendia capturar o espírito da época não apenas através das descrições, mas também a partir da fala daquelas pessoas, o que torna tudo muito mais crível e imersivo, já que desta aparente simplicidade emerge uma visão bastante poética a respeito do mundo (algo que rola também em Guimarães Rosa, mas que aqui segue uma linha mais direta e menos alegórica). É desta maneira, por exemplo, que Lennie imagina o futuro feliz ao lado do amigo numa fazenda só deles, um futuro que o leitor sabe ser impossível:
“E vai tudo sê da gente, e ninguém vai passá. Se a gente não gostá de um sujeito, vai podê falá assim: ‘Sai daqu’, e ele vai tê que obedecê, vai sim. E se um amigo aparecê, ah, a gente vai tê uma cama a mais, e a gente vai falá assim: ‘Por que qu’ocê num dorme aqui hoje?’, e, ah, meu Deus, ele ia ficá lá. A gente vai ter um cachorro setter e uns gato malhado, mas ocê ia tê que ficá de olho neles, pros gato não pegá os coelho”.
Lennie só consegue seguir em frente, porque a sua cabeça está nesse futuro perfeito e não naquela fazenda horrível onde as pessoas hostilizam e segregam o único negro presente, onde os animais são mortos para não terem que sofrer diante dos olhos de todos. Ele é sensível e não tem consciência de como o mundo o brutalizou, por isso talvez tenha o costume de acariciar a cabeça do rato já morto. Para Lennie, o que importa é um amanhã em que ele finalmente tenha direitos sobre um pedaço de terra, um pedaço de terra que seja seu e que possa dividir com quem ele gosta, “Ah, meu Deus, ele ia ficá lá”. Cabe a George estabelecer as estratégias para que esse futuro seja possível, porém ele não tem controle sobre tudo, muito menos sobre as atitudes do melhor amigo. No fundo, os dois são uma espécie de Vladimir e Estragon que, em vez de esperar, estão indo atrás de dignidade, estão em busca de um inexistente Godot.
Ratos e Homens é uma obra-prima da literatura universal, porque, entre tantas outras coisas, consegue falar sobre a solidão e a falta de rumo num mundo miserável através de personagens que são trágicos, mas com os quais nos identificamos. Steinbeck criou uma narrativa cuja sofisticação está justamente na simplicidade dessas figuras tão cativantes.
O livro tem um dos finais mais tristes que já li. Não chega a ser totalmente imprevisível, mas quando ele acontece, meu amigo, fica bem difícil de segurar as Cataratas do Iguaçu. É o tipo de cena que marca a vida de um leitor.
RATOS E HOMENS | John Steinbeck
Editora: L±
Tradução: Ana Ban;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Abril, 2005 (atual edição).