O que pensamos sobre a infância? De que forma compomos uma sociedade que verdadeiramente enxergue esses conceitos pré-concebidos que temos sobre esta fase da vida? Poderia ela também ser carregada de comportamentos políticos? Estas são apenas algumas das perguntas que surgem da leitura de República Luminosa (todavia, 2018; tradução de Antônio Xerxenesky), obra do espanhol Andrés Barba.
O narrador da história rememora um evento acontecido há 20 anos, na década de 1990, quando ainda era um jovem funcionário do Serviço Social recém-promovido para atuar na cidade de San Cristóbal, pequeno povoado de um país latino não identificado, que poderia ser, literalmente, qualquer uma das tantas nações que se espalham por este continente mergulhado em crises (dos mais variados tipos): um grupo de 32 crianças aparece, vindas de não se sabe onde, e transforma a realidade da pacata cidade.
Com idades entre 9 e 12 anos, parecem comunicar-se telepaticamente, falando uma língua incompreensível, composta de regras que subvertem a pronúncia usual das palavras, reduplicando sílabas, invertendo a pronúncia e se apropriando de idiomas indígenas, adaptando esses signos linguísticos conforme seus gostos e necessidades de expressão. Pouco são notadas até que, sem nenhuma espécie de sentido, um ataque feroz e homicida a um supermercado local coloca aquelas crianças imundas, famintas e pobres no centro político e social de San Cristóbal.
República Luminosa evoca diferentes discussões. Seja a visão exposta sobre “aqueles que vivem na selva”, uma zona adjacente às leis civilizatórias; o sentido sobre coletividade e pertencimento; e até mesmo a luta de classes, afinal como as crianças de famílias abastadas, educadas e limpas aceitam um “chamado” para que façam parte deste grupo diferente deles. Andrés Barba é cirúrgico na construção de um romance de ritmo vertiginoso, que cresce conforme aumenta a tensão a cerca destas misteriosas crianças.
República Luminosa, então, nos oferece uma infância cujas possibilidades rogam uma ordem distinta, alheia ao mundo que conhecemos, uma força insurgente, repleta de política, mas também de ódio, raiva e sexualidade.
Entretanto, mais chama a atenção como o autor espanhol busca trabalhar e desconstruir o mito da inocência infantil, utilizando para isso uma visão soturna sobre as sociedades do final do século 20. Cria-se, então, uma dualidade na qual existem crianças reflexo do divino e as demais, invisibilizadas por sua condição indígena (mas também social).
Neste cenário, o nome do livro de Barba ganha contornos bastante irônicos: como uma cidade sob a lei de milícias, que acata posturas antidemocráticas, devastada por roubos e insegurança, capaz de torturar crianças e cessar com seus direitos em prol de seu próprio extermínio, pode ser luminosa?
República Luminosa, então, nos oferece uma infância cujas possibilidades rogam uma ordem distinta, alheia ao mundo que conhecemos, uma força insurgente, repleta de política, mas também de ódio, raiva e sexualidade. Um romance que é, com o perdão do trocadilho, luminoso em suas analogias, capazes de serem pungentes sem forçar arroubos estilísticos, impactando simplesmente pela maneira ímpar como é rica e envolvente, até mesmo nos momentos em que Barba constrói uma narrativa que expressa a supressão de todos os limites da sensibilidade humana.
Ainda que obviamente ecoe autores como Joseph Conrad (Coração das Trevas) ou o enredo possua uma ligação muito próxima com o documentário polonês As Crianças da Estação Leningradsky (dirigido por Andrzej Celinski e Hanna Polak, concorrente ao Oscar de melhor documentário em curta-metragem de 2005), Andrés Barba desenvolve seu romance de forma muito sólida e criativa, fincando reflexões inteligentes que permanecem por dias após a leitura reverberando na mente do leitor. Não à toa, o autor é considerado um dos melhores escritores espanhóis da atualidade.
REPÚBLICA LUMINOSA | Andrés Barba
Editora: todavia;
Tradução: Antônio Xerxenesky;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Novembro, 2018.