Há alguns livros que têm a capacidade de nos transportar de volta para certas fases da vida, fazendo-nos reviver os sentimentos que tínhamos naquela idade – geralmente, aqueles que são mais desagradáveis e que, por isso, procuramos enterrar. Se deus me chamar não vou, romance da escritora paulista Mariana Salomão Carrara, é um exemplo de obra que está dentro deste tipo de microgênero literário. Podemos categorizar o livro também como romance de formação – aquele tipo de romance que acompanha o processo de crescimento e amadurecimento de uma personagem. Mas há um detalhe aqui: Maria Carmem, a protagonista de onze anos deste livro, não chega a atingir a maturidade.
Esta é uma obra agridoce, já que, por mais que haja um tanto de humor nesta história, ela é também profundamente triste. Acompanhamos aqui os diários de Maria Carmem (“com M”), uma menina que escreve muito bem para a sua idade. Estimulada pela professora, ela passa a imaginar um futuro para si como escritora, e resolve então escrever suas memórias (a ideia da ficção é explicada a ela ao longo do livro). Logo descobrimos que a menina prodígio, portanto, é uma espécie de outsider na própria vida: na escola, ela sofre bullying constante por ser gorda e muito grande para a sua cidade; em casa, por ser filha única, ela testemunha, sem ter parceiros, o bom relacionamento dos pais – o que só acentua sua sensação de solidão.
Se deus me chamar não vou tem como grande qualidade a capacidade que a autora tem de levar-nos de volta aos onze anos – idade que, como Maria Carmem esclarece com precisão, é uma espécie de limbo. “Onze anos é a pior idade do universo, dura pelo menos cinco anos”, escreve Carmem, com um tanto de humor involuntário. Nem criança nem adolescente, a menina está entre presa num estado estranho de invisibilidade no mundo (já que ninguém parece dar muita bola para ela) e de uma visibilidade incômoda, por ser grande e inadequada. Presa na sua lógica interior – como a ideia de que deveria parar de defecar, o que leva a uma cena horrível, mas hilária – Carmem está longe de ser uma criança feliz. Ou seja, nesta infância em específico, não há nada de idealizado.
Se deus me chamar não vou tem como grande qualidade a capacidade que a autora tem de levar-nos de volta aos onze anos – idade que, como Maria Carmem esclarece com precisão, é uma espécie de limbo.
Sua evidente inteligência, no entanto, levará a uma reviravolta em sua história. Seus pais mantêm, aos trancos e barrancos, uma “loja de velhos” herdada da família. Um dia, Carmem vê um sujeito do marketing falar na TV sobre gerontologia e toma a iniciativa de mandar um e-mail a ele pedindo ajuda para o negócio dos pais. Leonardo, o homem que ela contata, vai até a sua casa e sua chegada, aos poucos, traz consequências à vida de todos ali.
Em certo aspecto, Se deus me chamar não vou me lembrou de um de meus livros favoritos, O primeiro homem mau, de Miranda July. Em comum, Mariana e Miranda dividem este talento de construir personagens um tanto patéticos, mas cuja desconexão com o mundo faz com que nos sintamos profundamente conectados com elas – quer dizer, pelo menos os leitores que já se sentiram desencaixados de seus entornos. Maria Carmem atiça toda a nossa empatia e o desejo para que a situação um dia melhore, da mesma forma que Cheryl Glickman (uma mulher de 43 anos extremamente solitária), no romance de Miranda July, faz com que o leitor contate o sentimento de abandono inerente em todos nós.
Um dos temas tangenciais à obra – e talvez seja esse que mais pessoalmente me tocou – diz respeito à relação de Carmem com seus pais. Mas não se engane, não há relações abusivas nem trágicas nessa história. São pais normais, parecidos com a maioria das pessoas, que ralam para manter a casa e, pelo menos no que nos é narrado, são muito unidos e apaixonados (o que talvez seja uma abordagem meio atípica para personagens de romance). Parte dos dramas de Maria Carmem giram em torno desse fato: os pais se dão bem, se bastam, e ela parece sobrar nesta relação. Embora a mãe seja extremamente cuidadosa com a filha, a inadequação permanece, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito familiar.
Com estilo delicado e capaz de criar personagens marcantes, que nos comovem de forma sutil, sem que se use o recurso do dramalhão, Mariana Salomão Carrara nos entrega uma obra simultaneamente densa e leve, que permanece conosco após a leitura. Afinal, todos nós já tivemos onze anos e sabemos a dor que é ter a “pior idade do mundo”.
SE DEUS ME CHAMAR NÃO VOU | Mariana Salomão Carrara
Editora: Nós;
Tamanho: 120 págs.;
Lançamento: Julho, 2019.