Para falar de uma obra da escritora argentina Camila Sosa Villada, é inevitável ressaltar que estamos nos referindo a uma artista que, mesmo com poucas publicações, já foi capaz de criar um ethos próprio, o qual chamei, em outro texto, de um “universo travesti“: um imaginário e um espaço de existência literário para ser ocupado e explorado por muitas outras escritoras como ela.
Parece-me que, em Tese Sobre Uma Domesticação (editora Companhia das Letras, 2024, tradução de Silvia Massimini Felix), Camila leva sua proposta a um ponto alto, ao elaborar um romance que ela mesma define como ficção científica. Obviamente, trata-se de um chiste: ela assim categoriza a obra porque imagina aqui uma atriz travesti linda, bem-sucedida e com uma “família Doriana”. Ou seja, o gênero se encaixaria como uma provocação, pois se fala de uma mulher que não existe – ou que ao menos só poderia existir no futuro.
A atriz, que nunca é nomeada, é um fenômeno. É irresistível aos homens, que caem aos seus pés, e dona de um talento que conquista as plateias e a crítica. Ela está às voltas de uma montagem teatral de A Voz Humana, de Jean Cocteau (recentemente adaptada ao cinema por Pedro Almodóvar). Em casa, é esperada-por um marido gay lindo e herdeiro e pelo filho que ambos adotaram, e a quem os dois conseguem dar tudo.
Com seu texto ferino e pungente, Camila Sosa Villada está disposta a provocar-nos a pensar o quanto a atriz precisou se “domesticar” para caber em uma forma (e fórmula) que a escapa o tempo todo.
Seria viável que essa família sobreviva dentro dessa vida heteronormativa? Com seu texto ferino e pungente, Camila Sosa Villada está disposta a provocar-nos a pensar o quanto a atriz precisou se “domesticar” para caber em uma forma (e fórmula) que lhe escapa o tempo todo. O desejo ao belo marido lhe escapa (afinal, ele é gay: seu lance são os corpos masculinos), e ela também precisa da agressividade vinda do diretor da peça, e da rusticidade de um homem simples que a salvou, ainda menina, de um estupro.
O que vamos entendendo, ao longo da leitura, é que, mesmo que Camila tenha elaborado um mundo para si e para as suas iguais, esse mundo não é necessariamente belo. Ao menos não o tempo todo. Escreve Camila: “ela age como uma esposa que nunca agradecerá o suficiente por essa vida doméstica. Mas, assim como no teatro, um monólogo paralelo acontece enquanto finge ser outra”.
Sobre se encaixar
De fato, a atriz conquistou tudo aquilo que podia almejar, não sem enfrentar dificuldades. Mas, ainda assim, há algo em si que jamais vai se satisfazer. Adequada a um mito que é vendido a todas, todos e todes como ideal (de que uma vida de sucesso se faz com dinheiro, carreira e família), sua alma escapa o tempo todo da “jaula” em que se enfiou.
A verdade é que o mundo que ela desejou também a odeia. Mas a atriz travesti não é uma vítima. Como Camila Sosa Villada tece belamente com as palavras, há algo de muito vivo e até tóxico nessa mulher que quis escolher a própria identidade. O atrevimento presente em seu relato só é possível para quem tem lugar de fala: “é assim: basta uma travesti. Uma única travesti é suficiente para revirar a vida de um homem, de uma família, de uma instituição. Uma única travesti é suficiente para minar os alicerces de uma casa, desfazer os laços de um compromisso, quebrar uma promessa, renunciar a uma vida”.
A vida de comercial de margarina, portanto, parece um sonho anti-natural para quem já nasceu escapando da norma. Os corpos dissidentes da atriz – mas também os do seu marido gay, do seu filho com HIV, do meio irmão que luta contra o seu desejo por ela – parecem fadados a flertar com a infelicidade à medida em que tentam ser o que não são.
Camila Sosa Villada declarou, durante a Feira do Livro de São Paulo, que considera este seu melhor livro até o momento. A julgar pela ousadia atingida aqui, pode-se concordar que este romance pouco verossímil faz jus à carreira sem precedentes que a escritora argentina tem construído para si. Se em O Parque das Irmãs Magníficas ela brincava com o realismo fantástico em um conto de fadas travesti, em Tese Sobre Uma Domesticação, Camila mostra amadurecimento ao levar sua literatura a um patamar ainda mais alto e que foge de uma categorização.
TESE SOBRE UMA DOMESTICAÇÃO | Camila Sosa Villada
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Silvia Massimini Felix;
Tamanho: 224 págs.;
Lançamento: Junho, 2024.
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