O questionamento que rege o incensado romance Tudo é rio, obra de estreia da escritora mineira Carla Madeira, é uma das perguntas mais difíceis da humanidade: é possível perdoar alguém que nos causou a maior dor da vida?
É admirável que uma autora se aventure em uma questão tão difícil logo em sua primeira obra. Mas, no fundo, o centro deste pequeno livro não é a trama, mas a linguagem. Tal como outras autoras, como Aline Bei, aqui estamos diante de uma escrita poética particular, fluida – tal como a água do título e que é uma metáfora que rege todo o livro.
Tudo é rio conta a história de um triângulo amoroso marcado pela infelicidade. Lucy é a prostituta mais famosa da pequena cidade. Ela é a própria subversão, uma Geni, a puta que gosta que gosta de ser puta. “Para toda a cidade isso era uma provocação sem tamanho, qualquer pessoa de bem tolera as putas, com a condição de sentir pena delas”, escreve Carla Madeira. Sua construção, enquanto mulher livre, destinada à libertinagem desde a infância, é corajosa e provocativa.
Lucy, no entanto, tem uma falta em si. E o confronto com esse vazio se inicia quando, no bordel em que ela reina absoluta, cruza com Venâncio, um homem bruto, que ousa não desejá-la. A partir daí, Venâncio se torna sua obsessão: ele seria o único capaz de preenchê-la, de amá-la, justamente por ser o único que recusa a fazer isso. O amor, que é rio, e a paixão, que é espuma, tornam-se então também uma temática relevante em Tudo é rio.
Tudo é rio é uma investigação sobre a água, ou seja, sobre tudo aquilo que não se pode controlar.
Mas Venâncio já conheceu o amor com Dalva, e um rio corria entre eles. Para quem via de fora, o casal vivia um amor tão perfeito que parecia predestinado a acabar: “felicidade em demasia é dívida que não se pode pagar. A conta viria”.
E a conta veio. O que Lucy não sabe é que Venâncio, o objeto de seu desejo, carrega a sua própria tragédia. Ele experimentou o amor com Dalva e o perdeu, por conta de seu temperamento explosivo – e dizer mais que isso seria colocar aqui um spoiler. É, portanto, um homem quebrado. Como conviver com aquilo que não se pode remediar?
E o que fazer do espaço que sobra do amor perdido? Carla Madeira propõe enfrentar estas questões cruciais em sua obra, com considerações em torno do que é imponderável. Escreve: “o amor tem nome, mas não é nada que a gente possa reconhecer só de olhar. A dor a gente sabe o que é, tem lugar e intensidade que cabem na ciência. A raiva, o medo, o ódio entortam a cara com um jeito provável de se manifestar. Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar?”
Inventivo na forma, o romance organiza-se por capítulos que desobedecem a ordem cronológica e vão e voltam, tal como uma série televisiva em que a câmera muda a cada cena. O tema do amor e da tragédia não tem nada de original, mas o grande trunfo de Carla Madeira é a forma pela qual sua linguagem poética, suave, nos conta essa história.
Tudo é rio é uma investigação sobre a água, ou seja, sobre tudo aquilo que é tão potente que não se pode controlar. O amor, o ódio, a raiva, são sentimentos que, quando represados, tensionam o sujeito que sente e o torna cada vez mais próximo da morte. Aqui temos uma obra que permanece ressonando no leitor, mas não em sua mente racional, mas nesse intangível lugar onde mora aquilo que não conseguimos traduzir em palavras.
TUDO É RIO | Carla Madeira
Editora: Record;
Tamanho: 210 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2021 (atual edição).
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