Se durante o tempo de faculdade disseram à autora que lugar de jornalista é na rua, ela levou a máxima a sério. Não dormiu na rua – não que tenha contado, mas durante a prática do jornalismo fez da rua uma casa nas horas fora da redação. Foi nessa extensa moradia que Eliane Brum conheceu pessoas anônimas, conversou com elas e conheceu suas realidades, contadas na coletânea A Vida que Ninguém Vê (2006), publicada pela Arquipélago.
O livro é uma compilação de reportagens escritas por Eliane para o jornal Zero Hora, que ela integrou de 1988 até 2000, quando de lá saiu para trabalhar na revista Época. A entrada dela no jornal foi, sem querer, uma introdução àquela que se tornaria uma marca de seu texto autoral: a busca pelo cotidiano, pelo cidadão anônimo e ignorado em nossa sociedade. Eliane Brum conseguiu a vaga de repórter após inscrever um trabalho da faculdade em um concurso. O trabalho versava sobre filas enfrentadas do nascimento até a morte.
Em uma análise fria, esse tema pode não parecer grande coisa, não valer uma página completa de jornal. Combina com publicações da coluna homônima a este livro, nos idos de 1998 a 1999: um punhado de mínimos observados de perto pela repórter, que buscou entendê-los e extrair-lhes o macro sem os transformar em espetáculo.
Afastadas de nós pelo ritmo sem pausa ao qual nos acostumamos e aproximadas de nós pelas crônicas de Eliane.
Do homem cuja ligação com o mundo se dá pela voz, ainda que interrompendo os estudos de um cursinho próximo trovejando ‘hoooouuuuje’ corre um prêmio; ou o senhor Adail, para quem todo mundo que embarca no avião é doutor, mas ele só carrega as bagagens enquanto sonha voar no pássaro de metal e ser doutor por um dia; ou o profissional da lágrima, cuja vocação concentra as águas que nem todos deixam ou conseguem vazar durante os enterros. Situações quase microscópicas em meio ao tumulto diário, afastadas de nós pelo ritmo sem pausa ao qual nos acostumamos e aproximadas de nós pelas crônicas de Eliane.
Pausas que a autora criou para ouvir essas pessoas, torná-las menos anônimas e redigir sobre elas, com uma ousadia involuntária que pode nos fazer olhar com menos pressa e quiçá mais atenção ao nosso redor. Tal descrição soa romântica e até pretensiosa, como se toda leitura provocasse (ou assim devesse) ações diferentes após habitarmos suas páginas. Destaco uma crônica: a do homem que passeia em um evento country montado em uma vassoura porque não pode comprar os cavalos a venda; e se mantém próximo ao local porque é uma forma de se aproximar de um sonho consciente de conduzir um animal imaginário. Esse caminhar entre o que entendemos por real e um instante de sonho é comum a todos nós, ilustres anônimos nas metrópoles com vidas que ninguém vê.
A VIDA QUE NINGUÉM VÊ | Eliane Brum
Editora: Arquipélago;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Agosto, 2006.
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