Woody Allen e Haruki Murakami têm muita coisa em comum além do baseball, de retratar, como poucos, a solidão e o isolamento e de fazer do processo de criação uma tarefa cheia de rotina e método. Ambos são figuras importantes na arte que escolheram, mas não dominam as técnicas que os grandes mestres construíram. Ao contrário, preferem caminhos mais simples. E são, inegavelmente, geniais.
Em Woody Allen: a autobiografia – cujo título e capa brasileiros são um pastiche do original –, lançada há pouco pela Globo Livros e com tradução de Santiago Nazarian, o cineasta tenta desconstruir mitos e faz do livro um grande documento em defesa contra as denúncias de abuso que sofreu no começo dos anos 1990.
Repassando boa parte da sua infância, a relação ambígua com os pais – principalmente com a mãe –, e a descoberta da literatura para “aquelas garotas com longos cabelos lisos, que não passavam batom, quase não usavam maquiagem, se vestiam com gola rolê preta e saias com meias-calças escuras e carregavam grandes bolsas de couro com cópias de A Metamorfose”.
Para Allen pouco importa o tom das palavras, mas vale o que causam no leitor: são frases de efeito, adjetivações hilárias e comentários mordazes sobre quem quer que seja. Louise Lasser, a segunda esposa do diretor de Manhattan (1979), é retratada como uma mulher desequilibrada e com a “libido de um coelho “– o que justificaria as muitas traições da atriz. Repleto de um humor ácido e autodepreciativo – “vocês estão lendo a autobiografia de um iletrado” –, o texto parece uma conversa franca e sem amarras com um sujeito tímido, misantropo e neurótico.
Woody Allen: a autobiografia é um livro autoindulgente, cheio de uma beleza particular, bem-humorado e que não vai conseguir mudar a opinião de ninguém sobre Allen.
Allen, que na infância vagava entre o desejo de ser um criminoso vulgar e um detetive ardiloso, joga sobre a culpa de não ter lido os sinais para a espiral de manipulação e loucura que seria empurrado por Mia Farrow.
Tentando provar para si mesmo que foi ingênuo o bastante para acreditar “nos olhos azuis” da atriz, Woody expõe ao leitor uma pilha de provas e depoimentos que apresentam Farrow como uma mulher dissimulada e capaz de ensaiar os muitos números que arrastariam o ex-namorado para um lama que, até agora, parece perpétua.
Ainda que esse seja o trecho mais cansativo de Woody Allen: a autobiografia, soa também como a força-motriz do livro. Ao mesmo tempo, o autor consegue se provar um narrador exímio, algo bastante presente em seus filmes e nos livros que publicou, mas que em aqui ganha novas matizes ao proporcionar um texto complexo e denso, mas acessível e delicioso.
Lampejos
Entre várias elipses, Woody Allen vai compondo a sua própria história, destrinchando algumas e deixando de lado detalhes mais intensos sobre a produção de seus filmes.
São pequenos lampejos sobre o seu cinema, geralmente, apontando os fracassos de obras geniais como Broadway Danny Rose (1984), Interiores (1978) e Setembro (1987), revelando certo desdém até mesmo sua magnus opus, Manhattan – que muitos interpretam o seu manifesto sexual.
É interessante que um dos longas favoritos seja, justamente, Maridos e esposas (1992), o último rodado ao lado de Mia e cujo set de filmagem se tornou um campo de guerra após o escândalo perpetrado por Farrow.
A sua autobiografia é, em parte, uma bela carta-testamento de um artista singular, um manifesto de sobrevivência de um dos nomes mais interessantes e inteligentes da sétima arte. Dedicando um bom tanto do livro à esposa Soon-Yi, filha adotiva de Mia Farrow e que desencadeou todo o imbróglio que jamais parece ter abandonado o cineasta.
Woody Allen: a autobiografia é um livro autoindulgente, cheio de uma beleza particular, bem-humorado e que não vai conseguir mudar a opinião de ninguém sobre Allen.
WOODY ALLEN: A AUTOBIOGRAFIA | Woody Allen
Editora: Globo Livros;
Tradução: Santiago Nazarian;
Tamanho: 328 págs.;
Lançamento: Novembro, 2020.
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