Em 1942, Isaac Asimov (1920 – 1992), talvez o maior escritor de ficção científica de todos os tempos, rompeu com a ideia da separação entre máquinas e seres humanos. O conto “Andando em círculos”, anos mais tarde incluído no clássico Eu, robô (1950), dava um passo importante ao propor personagens mecânicos cuja personalidade se distanciava da natureza pragmática que prevalecia no sci-fi até àquele momento. Asimov antevia o estreitamento das relações entre os androides e a humanidade, algo que Philip K. Dick (1928 – 1982) utilizaria como leitmotiv de Androides sonham com carneiros elétricas? (1968), sua obra mais importante, e que ganha uma interessante releitura política através de Máquinas como eu, do britânico Ian McEwan.
Desde Jardim de cimento, seu primeiro livro e publicado em 1978, McEwan se debruça sobre temas complexos e resoluções um tanto quanto inquietante. Em Maquinas como eu, o escritor – que por anos carregou a alcunha de Macabro pelas suas abordagens ousadas e desconfortáveis –, retorna a 1982, numa antecipação do ano orwelliano, para narrar uma Inglaterra devastada: derrotada na Guerra das Malvinas, com o governo de Thatcher por um fio e a criação audaciosa de robôs domésticos que extrapolam os limites da simples convivência. A partir de um cenário ultramoderno, o livro explora as implicações da inteligência artificial e do uso desenfreado da tecnologia em detrimento da natureza humana.
No centro dessa discussão ética, McEwan apresenta Adão, uma máquina criada à perfeição, com vaidades, desassossegos e uma paixão desenfreada por Miranda, vizinha de Charlie, um antropólogo fracassado que vive de especulação financeira e está entre os primeiros a comprar um dos 25 humanos sintéticos fabricados. Nesse jogo de cena, um triângulo amoroso ambicioso e esdrúxulo, que reflete sobre os limites dos avanços tecnológicos e as complicações do processo de desumanização.
Máquinas como eu reafirma a preferência do autor por tratar de assuntos espinhosos sob vários pontos de vista. E em certo sentido, o corpo da obra de Ian McEwan sempre discutiu a questão do direito à vida. Em A Balada de Adam Henry (2014) coloca em xeque a religião. Reparação (2002), sua obra mais popular, é um pequeno tratado sobre a verdade e as consequências de decisões banais. Enclausurado (2016) retoma o drama de Hamlet para debater as relações familiares. O Inocente (1990) e Sábado (2005) partem da matéria política para articular uma intrincada análise pessoal e íntima dos seus personagens. Ainda assim, em nenhum desses livros havia um tom tão pesado frente ao futuro como se, ao investigar a “história alternativa” – Alan Turing (1912 – 1954), por exemplo, não morreu por ser homossexual, mas se tornou uma das principais vozes da ciência – , McEwan retomasse à discussão básica do que é a vida.
Ao tratar do não humano, ‘Máquinas como eu’ convida ao leitor a deitar na sua própria humanidade. Ao questionar certezas e levantar algumas dúvidas sobre a legitimidade do nosso direito sobre os demais seres e sobre o planeta também.
Perspectiva do eu
Longe se ser uma obra de ficção científica, Máquinas como eu se apropria de elementos do gênero para criar um suspense bem elaborado, que manipula o leitor, mas não deixa jamais de explorar a perspectiva do self. Sob esse prisma, Adão não é somente um androide, uma máquina programada e programável, e sim a réplica do homem imperfeito, capaz de carregar em seu sistema uma miríade de contradições e desentendimentos. Como o Sexta-feira de Robinson Crusoé (1719), Adão se afasta do seu amo para buscar o seu próprio eu, acabando amarrado às dúvidas que o rodeiam.
Em paralelo à trama principal, o romance vai percorrendo um caminho tortuoso sobre vingança, Estado de direito e liberdade. Nesse quebra-cabeça narrativo, McEwan estabelece paralelos entre presente, passado e futuro. Para além de uma discussão pura e simples sobre moral e ética, Máquinas como eu tece a respeito da capacidade que temos de conceber noções de verdade e realidade, e o custo dessas decisões em um parâmetro coletivo e também individual. Enquanto flerta com as possibilidades de uma sociedade altamente tecnológica, o livro é deixa sempre a dúvida do lugar para o qual essa hiperinformatização irá nos levar.
Portanto, de acordo com McEwan, o que diferencia humanos de androides não é a capacidade de sentir, mas a maneira como se lida com os sentimentos. Durante um dos seus ápices de amor por Miranda, Adão fere Charlie – quebrando o primeiro artigo das Leis da Robótica, criada por Asimov – e escreve algumas centenas de haicais para amada. Nessa dualidade, em que bem e mal convivem no programa do robô, é impossível não temer por uma nova luta de classes. Entretanto, apesar de todo o conhecimento que possuem, os humanos sintéticos entram ao colapso ao não darem conta de lidar consigo mesmos.
Por isso, ao tratar do não humano, Máquinas como eu convida ao leitor a deitar na sua própria humanidade. Ao questionar certezas e levantar algumas dúvidas sobre a legitimidade do nosso direito sobre os demais seres – e sobre o planeta também –, a narrativa se descola de argumentos falíveis e eleva a discussão. Não que McEwan seja completamente inovador no livro, entrementes, existe uma lógica interna na obra que prevalece, se comparado às provocações que já foram feitas por Asimov, Dick ou Jules Verne (1828 – 1905). Em contrapartida, Máquinas como eu possui um tom mais obscuro, não pela consciência da derrocada em que a civilização moderna se meteu, mas porque o futuro não para de chegar.
MÁQUINAS COMO EU | Ian McEwan
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Jorio Dauster;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.