O impacto cultural de Persépolis no cenário cultural é enorme. Há 20 anos, o mundo conheceu a voz de Marjane Satrapi, uma iraniana que contou como é crescer em um país fundamentalista e bélico. Soma-se ao “ato transgressor” o fato da narradora ser uma mulher, já que, como descobrimos na HQ, a voz feminina no Irã não vale nem como testemunha ocular de um crime.
Em Persépolis, acompanhamos Marjane por 15 anos, presa entre dois mundos. De um lado, os conflitos externos. Seu país passava por uma revolução que deixava atrás de si diversos mortos e desaparecidos, rumo a um ideal cada vez mais intransigente. Satrapi e sua família, bastante liberal e politicamente ativa, passa a correr riscos e se sentir deslocada. Em uma das primeiras cenas, vemos a Marjane ainda criança, tendo que lidar com as novas obrigações da escola, como o o uso de véu e a segregação entre meninos e meninas. Um de seus tios, por exemplo, é preso sob acusação de ser um espião soviético.
Do outro lado, conflitos internos. Durante sua infância e adolescência, Marjane sempre teve uma postura combativa. Sonhou em ser profeta, em participar de passeatas e protestos, além de xingar e brigar com freiras, locadores e quem mais se opusesse ao seu estilo de vida. Durante uma breve estadia na Europa durante a juventude, ela chegou a morar nas ruas da Áustria depois de uma desilusão amorosa.
Mas, entre os conflitos, bombardeios, uso de drogas e problemas sociais, a narrativa que verdadeiramente vemos é a formação de uma mulher, o seu processo de crescimento em quadrinhos.
“Eu não era nada, era uma ocidental no Irã, uma iraniana no ocidente, não tinha identidade alguma”, Marjane chega a escrever em uma das cenas. Ela estava presa entre dois mundos, deslocada. Mas, entre os conflitos, bombardeios, uso de drogas e problemas sociais, a narrativa que verdadeiramente vemos é a formação de uma mulher, o seu processo de crescimento em quadrinhos.
Mas não o sucesso da narrativa não se prende aos quadrinhos e suas diversos traduções. O livro ganhou uma adaptação para uma animação em 2D (veja abaixo), que concorreu ao Oscar de melhor animação em 2008. É a representação da força que as narrativas de memórias têm ganhado nos últimos anos. Isso é visível na trajetória da própria autora: Marjane comenta que só terminou de visualizar o projeto de Persépolis ao descobrir Maus, de Art Spiegelmann. Outras HQs, publicadas posteriormente, também seguem nessa linha, como Retalhos, de Craig Thompson, e Fun Home, de Alison Bechdel.
Bechdel não é só conhecida pelos seus quadrinhos, mas também pelo “Teste de Bechdel” – um questionário simples que procura analisar, de maneira rápida e curta, a presença narrativa de mulheres – algo bastante marcado em Persépolis. Em uma mesa comemorativa do aniversário de 20 anos, a Cia. das Letras colocou as quadrinistas Amanda Mirana e Aline Zouvi para conversar sob a mediação da Gabriela Borges, do portal Mina de HQ. A primeira observação que todas tiveram sobre a obra de Marjane foi, justamente, a importância de uma voz feminina que não fazia parte da ideia hegemônico de quadrinhos com artistas homens (e, principalmente, que desenhavam super-heróis).
https://www.youtube.com/watch?v=Osk_guNfNZI
Não só a autora e a protagonista saltaram aos olhos, mas o próprio estilo: o quadrinho é todo em preto e branco com um traço único, distinto daqueles que marcam a capa dos heróis da Marvel ou DC. Em suas obras, Marjane traz uma história com sutileza e traços que remetem ao antigo estilo persa.
Sua voz não deixa esmaecer. Isso é visível pela vitalidade que sua obra mantém até hoje, vinte anos após a publicação. Além disso, alguns outros livros figuram o catálogo traduzido da autora. Frango com Ameixas, um conto bastante bonito e triste, conta a história de um homem que se frustra no amor e desiste de viver ao perder seu instrumento musical preferido; e também Bordados, uma HQ sobre sobre conversas femininas ao pé de um samovar.
PERSÉPOLIS, 1 – Marjane Satrapi
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Paulo Werneck;
Tamanho: 80 págs.;
Lançamento: Outubro, 2004.