Talvez poucos assuntos tenham sido tão pautados nos últimos anos quanto o racismo. Outrora tido como óbvio (pois, na teoria, ninguém é racista), o debate tem se concentrado nas diferentes formas pelas quais a discriminação racial se manifesta, gerando danos e humilhações dos mais diversos níveis – desde a injúria explícita até a introjeção por pessoas afrodescendentes de que precisam se calar frente ao próprio sofrimento.
Há muitas obras literárias sobre o tema. No entanto, o romance Marrom e Amarelo, de Paulo Scott (obra finalista no prestigiado prêmio Jabuti) oxigena a discussão ao virá-la para um ângulo menos enfocado nas mídias. A premissa é interessantíssima. Somos levados pela narrativa sob a ótica do protagonista Federico, um ativista dos direitos humanos que participa de uma comissão em Brasília que debate a situação do futuro das cotas raciais. Federico é, portanto, uma mente centrada, correta, trazido à comissão justamente pela sua experiência e envolvimento com a causa. Dedicou sua vida a resgatar e ajudar jovens.
Não obstante, a trama logo se complexifica para além da superficialidade. Federico é irmão de Lourenço. Mesmo sendo filhos do mesmo pai e mãe, algo os separa: enquanto Lourenço é negro (marrom), Federico tem tez parda (amarela). Suas vivências, portanto, se aproximam e se afastam. Será que Federico, enquanto ativista, é mais legitimado a pensar o racismo que o próprio irmão, que sofre discriminação na própria pele, mas opta por viver a sua vida de forma mais ordinária? Há algum fator de culpa, pelos privilégios que tem, na luta que Federico compra?
Marrom e Amarelo, desta forma, é um romance visceral justamente por trazer luz, de uma maneira muito original, aos modos pelos quais o racismo diário opera, bem como a raiva que ele faz brotar naqueles que o sofrem.
A história é construída em um vai-e-vem cronológico de forma bastante segura, colocando os personagens no ano em que a história transcorre, 2016, mas fazendo-os retornar ao ano de 1984, quando transcorrem uma série de fatos que marcarão o futuro dessa família. No presente, Federico é convocado a novamente enfrentar questões que pareciam já enterradas no seu inconsciente. Além disso, ele cede à tentação de tentar reconectar-se com Bárbara, o amor que não consegue esquecer, em uma paixão que parece impedi-lo de desenrolar de forma saudável a sua vida amorosa.
O elemento central a catalisar esse “ajuste de contas com o passado”, entretanto, é a sobrinha Roberta, filha de Lourenço, uma aspirante a jornalista que parece reviver o idealismo amortecido no tio Federico, e que se envolve num problema jurídico que, por fim, confronta o protagonista a retornar à sua cidade (o romance se passa em Porto Alegre, centralizando-se no bairro Partenon, de classe média baixa, com alta concentração de pessoas negras) para resolver questões pendentes. Há, portanto, uma espécie de parábola aqui, remetendo ao filho pródigo que retorna à casa para tentar entender porque tornou-se quem é.
Não por acaso, me parece, o romance se passa no Rio Grande de Sul, mais especificamente em Porto Alegre – cidade do autor, Paulo Scott. A família, como sabemos pelas informações contidas no livro, habita o mesmo bairro em que o escritor viveu e cresceu, sugerindo contornos autobiográficos à história. A escolha pelo estado não parece aleatória, uma vez que há, nesta parte do Brasil, uma espécie de racismo introjetado no cotidiano, presente nas piadas, na organização espacial das cidades, no orgulho das raízes europeias expressas por boa parte dos gaúchos. Um racismo, portanto, menos disfarçado do que o que se encontra em outras partes do país.
Marrom e Amarelo, desta forma, é um romance visceral justamente por trazer luz, de uma maneira muito original, aos modos pelos quais o racismo diário opera, bem como a raiva que ele faz brotar naqueles que o sofrem. Os pequenos poderes situados nas instituições (como numa comissão que discute cotas, nos exércitos, nos grupos de amigo, na polícia), mas não apenas nelas, esmagam as minorias justamente porque não conseguem ser vistos e apontados com clareza. Ao desnudar o problema pelos olhos de um “estrangeiro” (o ativista “amarelo”, esmagado pelas injustiças que o cercam mas não o tocam), Paulo Scott cria uma obra multifacetada que certamente merece ser lida com muita atenção.
MARROM E AMARELO | Paulo Scott
Editora: Alfaguara;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Agosto, 2019.