Ignorar a recente “demanda” pela publicação de Minha Luta – ideário nazista escrito por Adolf Hitler e que acaba de entrar em domínio público – é como fechar os olhos para a fumaça de um incêndio que se alastra. O livro, após passar sete décadas com os direitos de publicação bloqueados e sob tutela do Estado da Baviera, está prestas a se tornar um novo fenômeno editorial no Brasil, com edições confirmadas pela Geração (comentada) e Centauro (texto integral). A Edipro, que também havia programado a sua edição para esse mês, cancelou a publicação e disse que a empreitada poderia ser mal interpretada.
O escritor Ricardo Lísias, autor de Divórcio e O Céu dos Suicidas, tem encabeçado a luta contra a publicação do livro no Brasil. Em um texto escrito para o UOL, Lísias é categórico ao definir Hitler como um “desgraçado”. “A questão não é a interpretação que alguém possa dar a um texto. O fato é que o autor de Minha Luta é um desgraçado. Ele é mais que um desgraçado. Ele é alguma coisa que as palavras não podem transmitir. Hitler é o responsável direto pelo assassinato de dezenas de milhões de pessoas”, afirmou.
A questão ficou ainda mais intensa depois que algumas redes de livrarias se recusaram a vender as novas edições da autobiografia do líder alemão ou de não promovê-la enquanto produto. Obviamente, Minha Luta circula há tempos clandestinamente na internet e não é nem um pouco difícil encontrar a obra para download gratuito.
Para tentar driblar a recusa do mercado livreiro, a Geração adotou uma técnica simples: interessados em comprar o livro devem entrar em contato com a editora e “reservar” o exemplar durante a pré-venda.
Na Alemanha, por exemplo, o livro já está esgotado na Amazon e faz parte de diversas listas de mais vendidos. Coincidência ou não, O Diário de Anne Frank, relato de uma adolescente judia que se escondeu com sua família no sótão de casa durante a Segunda Guerra e acabou morta pelas tropas de Hitler, está 6º lugar na lista dos mais vendidos do site PublishNews.
Entre o ‘publicar’ e o ‘não publicar’ um livro como Minha Luta, a linha do bom senso e da censura parecem muito tênues – a menos que a sua pele tenha sido cravada pelas insígnias de uma ideologia que, apesar de todo o esclarecimento, teima em reaparecer.
Democracia
Quem defende que o livro ganhe as prateleiras das lojas diz que a publicação é um ato de democracia. O escritor paranaense Miguel Sanches Neto, em texto também para o UOL, afirmou que “Minha Luta deve ser publicado comercialmente porque é pilar da democracia o acesso universal a todos os conteúdos, porque a proibição cria uma atração nociva e porque este livro se converteu numa peça de acusação contra os próprios nazistas.”
O que se tem deixando de lado é a questão ética – já que o escrito de Hitler foi usado para embasar as ideias que permitiram o assassinato daqueles que eram considerados inferiores. Para as lideranças judaicas no Brasil, o livro pode – facilmente – se encaixar na categoria de textos que promovem o racismo e, portanto, ter a circulação proibida.
Proibição
No começo deste mês, uma decisão da 33ª Vara Criminal proibiu a venda do livro e emitiu mandados de busca e apreensão no estado do Rio de Janeiro. Por enquanto, essa foi a única medida judicial a impedir o comércio do ideário nazista. Luiz Fernando Emediato, em entrevista ao Estadão, classificou a decisão como “inócua”.
“O livro de Hitler pode ser baixado grátis pela internet, em vários idiomas, inclusive português. No nosso caso, vamos esperar a citação e recorrer, porque a Constituição Federal nos garante o direito da livre expressão. Acredito que o próprio juiz poderá rever sua decisão, ao verificar e confirmar que nossa edição, crítica e comentada, presta um serviço à humanidade, pois desmente, refuta e condena as ideias de Hitler”, disse.
Entre o “publicar” e o “não publicar” um livro como Minha Luta, a linha do bom senso e da censura parecem muito tênues – a menos que a sua pele tenha sido cravada pelas insígnias de uma ideologia que, apesar de todo o esclarecimento, teima em reaparecer.