Todos nós conhecemos um Holden Caulfield. É aquele cara gente boa quando quer, mentiroso pra cacete 80% das vezes que se puxa conversa com ele – vai saber se ele quer se proteger se um ataque que só existe na própria cabeça ou só quer impressionar mesmo -, sabe ser franco de vez em quando, e bem no fundo é um cara inofensivo com um claro sentimento de inadequação com o resto do mundo e consigo. O protagonista do O Apanhador no Campo de Centeio, célebre romance de Jerome David Salinger publicado em 1951, é desses que nos lembram de quem a gente conhece, não necessariamente gosta.
Talvez a sua versão do Holden seja aquele cara da faculdade, do trabalho, da família, da pós com quem você convive apenas porque vocês estão no mesmo lugar, sem ter um vínculo afetivo tão forte. Não é um cara que te atormente ou te prejudique, pode até ser alguém bom de papo depois que você saca o jeito da pessoa e se dispõe a conversar, ainda que você precise relevar algumas manias e até aprenda a rir delas, da insistência em xingar todo mundo sem motivo à necessidade mal camuflada de se esquivar de assuntos mais particulares.
Se o romance do Salinger fosse ambientado em nossa era, seu protagonista ficaria zapeando de uma série à outra da Netflix, pulando de página à página com gif de gatinho e batendo um pote de gordice.
Se o romance do Salinger fosse ambientado em nossa era, seu protagonista ficaria zapeando de uma série à outra da Netflix, pulando de página à página com gif de gatinho e batendo um pote de gordice, de vez em quando leria sobre um tema fora do próprio círculo de convivência e teria disposição pra conversar numa boa – porque nada dessas coisas fala direto para ou sobre ele. Mas se você quisesse bancar o durão-conservador e perguntasse à queima-roupa o que o Holden pretende fazer da própria vida, ele inventaria uma resposta qualquer e ficaria por isso mesmo.
Daí fica claro que ele se meteu em um problema grande. De novo. Foi o quê?, a terceira, quinta vez… esse ano? Vale a pena contar nos dedos e jogar tudo na cara dele? Outra expulsão de um colégio, fica difícil ter paciência com ele. Nem pergunte quão ruim vai ser a reação da família quando souber – e bem quando, porque vai ser complicado fazer o simpático Holden contar o que aconteceu, seja na versão dele ou na da escola. Aí complica, ele tem cabeça pra estudar qualquer coisa – pelo menos parece -, seus eventuais conflitos com alguns de sua turma podem ser tolerados e considerados normais à sua classe, idade e condições afins, mas no fundo chega na mesma dúvida: o que acontece com o Holden?
Pode ser pura birra com o mundo que o cerca, quando poderia buscar um canto pra fazer o que precisa sobrevivendo à sociedade. Pode ser algum problema psicológico com raízes profundas e quase associado à identidade e autoestima dele, sem ninguém perceber. Talvez alguma condição de saúde que interfira em seu desempenho, à espera de um diagnóstico e de um tratamento pra tornar a saúde tolerável. Pode ser que só precise ser confrontado diretamente pra resolver essa questão consigo mesmo. Difícil saber de verdade ou perto disso.
O Holden Caulfield do O Apanhador no Campo de Centeio e a versão que nós conhecemos dele é essa pessoa cujo íntimo está escondido em algum canto desconhecido até para si, a gente mal entende umas migalhas e com o que sabemos pouco e mal, mas sabemos, ainda podemos nos perguntar o que acontece.