Não é de hoje que o jornalismo vive um momento delicado, de crise e busca de identidade. As notícias falsas estão institucionalizadas e a ética cai por terra quando o jornal toma um lado. Nada disso é novidade, na realidade, mas os sintomas do descrédito na verdade estão mais acentuados e perigosos em todos os lados e em todos os espectros políticos. A ciência é negada. A história é invalidada. Os fatos são desmentidos por outros fatos inconsistentes. É a morte da verdade, dizem.
Essa torrente de desesperança sempre chega nos momentos em que as instituições estão mais fragilizadas e as pessoas passam a tentar encontrar outras fontes de informação. O reflexo dessa cascata de descrença é o jornalista colocado em posição de vulnerabilidade física, psicológica e, por conseguinte, profissional. Em meados da década de 1980, Joe McGinnis é processado por Jeffrey MacDonald, condenado por assassinar a esposa e as duas filhas. McGinnis contou a história de MacDonald em Fatal vision – escrito com a permissão do biografado e com base em entrevistas feitas na prisão – e acabou envolvido em uma das ações mais bizarras da justiça americana. O assassino, que esperava ter a sua inocência estampada no livro, processou o jornalista e sua editora, faturando quase meio milhão de dólares na época.
A história é dissecada anos mais tarde por Janet Malcolm em um artigo para a revista The New Yorker e publicada em livro como O jornalista e o assassino. Em uma jornada noite adentro, Malcolm tenta entender as brechas da lei, as remissões no texto de McGinnis e a palidez do jornalismo frente à fome do público por polêmicas. Sem se prender em falsos pragmatismos ou apego a dogmatismos, Janet Malcolm cria uma das reflexões mais impressionantes acerca do papel da imprensa no cotidiano do cidadão comum.
Os mal-entendidos e falhas de apuração – ou rumores ou lendas mesmo – fazem parte do jornalismo literário.
McGinnis vive uma espécie de apocalipse moral, em que a realidade desmorona frente ao absurdo da manipulação da informação e da opinião pública. Enquanto estava preocupado em contar uma história – como todos os seus vícios e virtudes –, o jornalista se deixou levar pelo desejo estético da fidelidade e da aproximação máxima com as cenas em sua verdade. É como o personagem Borges, o tradutor Pierre Menard, que deseja atingir tamanha perfeição em sua versão francesa para Dom Quixote que passa ele mesmo a ser autor do clássico de Cervantes. É ao perceber, e explorar, essas inversões de papel que O jornalista e o assassino ganha corpo.
Mesa virada
Mais ou menos na mesma época em que Fatal vision foi publicado, Malcolm estava envolvida em um processo tão – ou mais – estranho. Depois de escrever um artigo para a mesma The New Yorker sobre Jeffrey Moussaieff Masson, psicanalista responsável pelo projeto Freud Archieves, a jornalista recebeu um processo de dez milhões de dólares em que era acusada de inventar citações – anos mais tarde ficou provado que Malcolm não recriou uma só palavra. Nessa mesa virada, Masson – a quem a jornalista chamou de gigolô intelectual – acabou perdendo a batalha judicial em 1994.
Essa relação de Malcolm com as singelezas do noticiário foram o impulso para que O jornalista e o assassino viesse ao mundo, mas não como um acerto de contas ou uma vingança deliberada, e sim como um olhar para dentro. Os mal-entendidos e falhas de apuração – ou rumores ou lendas mesmo – fazem parte do jornalismo literário. Há quem diga que Truman Capote criou de própria cabeça todas os diálogos de A sangue frio – ou ao menos os melhorou. Gay Talese, certamente o mais importante ícone vivo do new journalism, se viu em uma sinuca de bico ao descobrir que foi enganado por décadas por um voyeur sociopata.
Em tempos turvos, e passados quase 40 anos do caso que originou O jornalista e o assassino, este é um livro que ainda é um guia importante a ser lido e levado a sério.
O JORNALISTA E O ASSASSINO | Janet Malcolm
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Tomás Rosa Bueno;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Março, 2011.
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