Em seu primeiro romance, O Rio de Todas as Nossas Dores, João Caetano do Nascimento (edição do autor, 2017) realiza uma vingança dentro de uma premissa básica da narrativa de folhetim. Se, em nossa sociedade, prevalecem as injustiças sociais, através da ficção o escritor pode reconstruir um mundo justo, em que o bem vence o mal. Segundo define seu autor, seu romance é denúncia das injustiças da sociedade e de como as marcas desta injustiça podem transformar a vida de uma pessoa.
O cenário é a fábrica Papeleira e a Vila da Alegria, uma vila operária que cresce a seu redor. A realidade dura e compacta da fábrica e dos operários é mostrada simultaneamente com os aspectos psicológicos dos personagens. Tudo começa quando se derrubam casas para construir a empresa, tendo muitos operários, e uma criança, em especial, como testemunha:
“Anos mais tarde, ele saberá que a memória pesa como chumbo, seja ela real ou imaginária. Mas é essa memória que o faria viver. Ele iria carregar a lembrança da poeira espalhada pelo vento, dos cães e seus latidos, do som das botas a castigar o chão de terra, dos gritos e lamentos a ecoar sem resposta, dos choros e risos, das vozes de dor e prepotência, da explosão das bombas de gás, da exibição dos cassetetes e armas a mostrarem a face nua do poder e do ruído rascantes dos tratores a esmagarem projetos de vida.” (página 16).
A realidade dura e compacta da fábrica e dos operários é mostrada simultaneamente com os aspectos psicológicos dos personagens.
Esta criança se tornará o mistérioso Luís da Silva, que encontrará na vila a líder sindical Alice, o menino Tiziu e o prepotente dono da fábrica Fulgêncio. Luís da Silva, codinome de Vicente, hospeda-se por nove dias numa pensão da vila. Ele pretende executar uma missão para a qual se preparou durante 28 anos. Tanto o menino Tiziu quanto Alice, ex-secretária de Fulgêncio, são figuras que iluminam a breve e tensa passagem de Luís pela vila. Na pensão de dona Penha, ele conhece o ex-sargento Randolfo, em fim de carreira, que se tornará uma sombra para seus planos. E também as alegres prostitutas, que quebram a rispidez do relacionamento entre os adversários.
Alice há cinco anos deixou o cargo de secretária ao se aliar às demandas dos trabalhadores. A poluição – o fedor é marca registrada do lugar – e as mutilações sofridas pelos operários fazem com que a jovem passe para o lado dos sindicalistas. Entre Luís, Alice e Tiziu se desenha uma cumplicidade. Assim como há outra cumplicidade entre Fulgêncio, Raldonfo e o Major Escape.
“Os olhos de Vicente, como os olhos dessas aves de rapina, acompanhavam os movimentos do garoto. Viu quando o menino parou em frente ao portão, viu também o sobrado que se destacava no amontoado de construções monótonas. Era sem ostentação, mas estava bem conservado, com pintura nova, de um amarelo vivo que resplandecia ao sol. Depois, foi aquela aparição. Os olhos de Vicente piscaram surpresos. Sim, era uma aparição, só assim ele conseguia definir a presença da mulher de cabelos loiros. Alta, cerca de trinta anos, corpo esguio, coberto por roupas simples que ressaltavam uma elegância natural e despojada. E ela tinha um sorriso cativante nos lábios. Essa aparição durou apenas um momento, logo ela e o garoto sumiram dentro do sobrado.” (página 43)
O Rio de Todas as Nossas Dores retoma as narrativas em que o bem, representado pela primeira tríade, luta contra o mal, representado pela segunda tríade. Este aspecto novelesco, dentro de uma narração em que os pensamentos dos personagens transbordam, torna o enredo fluido. Apesar de tratar de um tema denso – as conflituosas relações entre capital e trabalho -, a escolha acertada de contrapor e caracterizar heróis e vilões [highlight color=”yellow”]faz a narrativa crescer[/highlight]. João evoca um Érico Veríssimo ou um Jorge Amado, como se os nossos grandes escritores tivessem se deslocado da época da colonização para os centros urbanos.
Um detalhe extraliterário é que João Caetano do Nascimento autopublicou seu livro e é autor da periferia de São Paulo. Ou seja, [highlight color=”yellow”]ele não conta com o sistema literário para divulgar-se[/highlight]. Por causa deste detalhe – que significa tudo para o desempenho de um título no mercado -, embora tenha sido uma obra de fôlego, o romance, com tiragem inicial de 300 exemplares, corre o risco de ser lido por um pequeno círculo de leitores.
João Caetano começou a escrever muito jovem, nos anos 70. Participou do Movimento Popular de Arte (MPA), grupo de artistas que surgiu em 1978, no bairro de São Miguel Paulista, periferia de São Paulo, com a proposta de levar a arte para praças, ruas, favelas e dialogar com os movimentos sociais que explodiam no Brasil naquele período, ainda em plena ditadura militar. Ficou entre os classificados do Prêmio SESC de Literatura de 2011 com o romance Náufrago Noturno.
[box type=”info” align=”” class=”” width=“”]O RIO DE TODAS AS NOSSAS DORES | João Caetano do Nascimento
Edição do autor;
Páginas: 228;
Lançamento: Março, 2017.[/box]