No texto anterior, descrevi algumas considerações sobre a leitura de Quincas Borba para um projeto que desenvolvi para conhecer o básico do autor. Nessa obra, Machado nos leva pela história de Rubião, um herdeiro inocente que se apaixona por Sofia, uma mulher casada e que, junto com o esposo, engana o pobre mineiro para lhe abocanhar a fortuna. Por fim, Rubião morre pobre e louco, sentindo na pele o dito que resumia a doutrina filosófica de seu Quincas Borba, de quem recebeu a fortuna: “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
Willi Bolle, professor de literatura, afirma que neste livro há um dos capítulos mais significativos para a construção do narrador machadiano – que é agressivo, intervém e deixa o leitor perplexo. O Cap. CVI é a retomada de outro anterior, quando, de uma conversa com um cocheiro, insinua-se um possível caso de adultério de Sofia com outro pretendente. Quando essa acusação torna-se falsa, o narrador coloca a culpa no leitor, como no trecho: “Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa”.
Conforme destacado por Willi Bolle, com esse parágrafo Machado de Assis largou o modo realista de contar suas histórias “em prol de uma liberdade lúdica do narrar, onde a primazia é dada às palavras que criam e inventam fatos”. No entanto, antes de nos aprofundarmos mais sobre essa mudança na produção machadiana, é preciso entender um pouco sobre a produção da época.
Alfredo Bosi, em seu livro História Concisa da Literatura Brasileira, afirma que a partir de 1850 a inteligência brasileira passa a ser permeada cada vez mais pelo pensamento europeu, que na época eram a filosofia positivista e o evolucionismo. Essa influência, no nível de produção da prosa, gerou uma onda de escritores antirromânticos que buscavam uma prosa objetiva que pudesse responder aos anseios do método científico.
Tendo como influência os franceses Flaubert, Zola, e Maupassant, os escritores realistas, assumiram ares deterministas e naturalistas em suas obras, que geralmente tinham personagens e enredos que eram guiados pelas supostas leis naturais que regiam a sociedade.
A escrita de um livro se tornava, assim, o mero desvendar de uma verdade, a dissecação de um comportamento, mas Machado de Assis trouxe um novo entendimento nessa produção. No episódio 259 do podcast 30:Min, intitulado “As várias realidades do realismo”, José Figueiredo e Vilto Reis discutem a impossibilidade de se atingir o ideal imposto de reproduzir uma realidade factual nas páginas de um romance pelo fato da narração partir do pressuposto de que há alguém contando algo para outro alguém. Esse filtro pessoal faria com que não houvesse um romance com a Verdade, mas a possibilidade de se contar verdades – e é com essa noção de Machado brinca.
Adolfo Bosi diz que Machado foi o “ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira”. Um dos motivos destacados no capítulo dedicado ao autor foi a presença da mesquinhez humana. O cinismo que surgiu a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas fez com que do “narrador onisciente, que tudo vê e tudo julga, [emergisse] a consciência nua do indivíduo, fraco e incoerente”. Em relação ao ideal da objetividade alcançada pelo método científico, Machado de Assis colocou o filtro da subjetividade e nos apresentou narradores nem um pouco confiáveis.
Um dos textos mais emblemáticos de Machado sobre essa postura foi a crítica que realizou sobre o livro Primo Basílio, de Eça de Queirós, publicada em 1878 no jornal O Cruzeiro, três anos antes de publicar Memórias Póstumas de Brás Cubas. Na abertura do texto, Machado diz que a prosa realista do escritor português só é prazerosa em poucos momentos – quando são esquecidos os propósitos da escola realista ou quando há cenas que destoam do romance -, mas a maioria obedece ao tom da leitura de um inventário: “pois que havia de fazer a maioria, senão admirar a fidelidade de um autor, que não esquece nada, e não oculta nada? Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia”.
O cinismo que surgiu a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas fez com que do “narrador onisciente, que tudo vê e tudo julga, [emergisse] a consciência nua do indivíduo, fraco e incoerente”.
Além disso, o brasileiro dirige grande parte das suas críticas à construção da personagem Luísa, que chama de marionete (títere) sem nenhuma paixão, desejo, nervos ou consciência. A protagonista agiria apenas de acordo com os estímulos do ambiente e, se não fosse o acaso, não haveria romance:
“Nenhuma razão moral explica [o acontecimento que move a trama], nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito, nenhuma perversão sequer. (…) Ela [Luísa] cai sem repulsa nem vontade, que nenhum amor nem ódio a abala, que o adultério é ali uma simples aventura passageira, chego à conclusão de que, com tais caracteres como Luísa e Basílio, uma vez separados os dois, e regressando o marido, não há meio de continuar o romance, porque os heróis e a ação não dão mais nada de si”.
Para Machado, o que ocorre ao privilegiar uma narrativa focada na retratação do factual é uma inversão de valores. “A substituição do principal pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e contrário às leis da arte. (…) O drama existe, porque está nos caracteres, nas paixões, na situação moral dos personagens: o acessório não domina o absoluto”.
É essa valorização dos conflitos morais, das paixões e de uma verdade que emerge a partir de filtros subjetivos que caracteriza a parte madura das obras de Machado e que permite a constituição de uma das perguntas mais emblemáticas da produção do autor brasileiro, fruto do próximo livro a ser discutido: teria Capitu traído Bentinho ou não?