Na famosa cena final de Os Incompreendidos (1959), o jovem protagonista corre pela praia em direção ao mar e, após molhar os pés, dá alguns passos na direção oposta, olha diretamente para câmera e a imagem congela mostrando o rosto de um garoto absolutamente solitário.
O filme de François Truffaut rondou um pouco a minha mente enquanto lia O Cão Mentecapto, coletânea de contos de Otavio Linhares, lançada recentemente pelo selo Encrenca – Literatura de Invenção. Neste que é o seu terceiro livro, o escritor curitibano nos apresenta um universo tão violento e desolador quanto o clássico da nouvelle vague.
Como não há mar em Curitiba, a solidão dos personagens de Linhares corre pelas ruas da capital social, modelo de urbanização, um local bastante aconchegante para cheirar tíner ou tomar um tubão com a piazada do colégio Estadual.
Algo bastante comum num livro de contos é a irregularidade. Geralmente, há um certo número de textos bons e o restante está ali só para completar o time e fechar o número de páginas que seja viável para a editora. Felizmente, esse não é o caso de O Cão Mentepacto, pois aqui temos a rara situação em que todos os textos se mantêm num nível muito elevado, graças, entre outras coisas, à ideia de manter uma mesma proposta de linguagem e um universo ficcional coerente, mesmo com histórias que não necessariamente dialoguem diretamente entre si.
Como não há mar em Curitiba, a solidão dos personagens de Linhares corre pelas ruas da capital social, modelo de urbanização.
Os contos falam sobre o processo de amadurecimento (ou quem sabe de embrutecimento) de piás e gurias atolados em dúvidas e angústias, descobrindo os limites da cidade e de seus próprios corpos através do sexo, da bebida e da violência, enfrentando a brutalidade cotidiana e deixando-se levar por todo tipo de experiência sensorial, feito quem fica indeciso entre encontrar algum sentido pra vida ou simplesmente tentar esquecer todos os sentidos através de um delírio quimicamente controlado.
Linhares revira um modelo de infância/adolescência que pode ser exatamente o mesmo de qualquer um que tenha sido um piá de bosta de baixa renda nos anos 90. Ele vai despejando na nossa frente uma porrada de lembranças que já haviam sido esmagadas pelo ir e vir do trabalho (esse nosso resumo de vida adulta), então não são poucas as vezes em que você se pega pensando se o autor teve acesso a alguma de suas memórias. É como se ele investigasse os meandros de nossa educação sentimental para comprovar a origem desse produto meio lamentável que nos tornamos.
O grande destaque de O Cão Mentecapto é a linguagem. As criaturas de Otavio Linhares ganham vida própria a partir do momento em que o autor consegue estabelecer uma fluidez e uma naturalidade impressionante na forma como eles falam. Não é nada simples reproduzir a linguagem coloquial de modo que ela não soe forçada, há toda uma questão que envolve repetição, pontuação (o autor elimina várias vírgulas e insere conjunções para ligar as orações, evitando assim pausas que seriam naturais na escrita, mas não na fala), bem como uso de léxico cheio de registros regionais ou que representam a idade dos personagens. Mais do que a geografia, é principalmente através do vocabulário que o autor nos situa em Curitiba, mas ele não entope o livro de gírias locais de forma gratuita, elas são usadas de modo a tornar aquele universo cada vez mais crível.
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Linhares coloca seus personagens para falar e, em meio às suas fabulações, vemos brotar um lirismo que não demorar a ser suplantado pela brutalidade do mundo real, como nesse trecho do conto “Famalênali”:
“saímos descendo a avenida do batel em direção à arthur bernardes. a made me olha sorrindo e passa o braço por cima do meu ombro e vamos andando como duas grandes amigas. você é minha melhor amiga. penso. e é um pensar vagabundo. desses pensamentos que a gente tem assim de boa bem relaxada esquecendo da vida com a cabeça coalhada de maconha numa ladeira desgovernada com o vento a favor e as árvores farfalhando e as nuvens te puxando cada vez mais em direção ao esquecimento. só que nunca dá pra esquecer. o barulho de uma freada faz a gente esquecer que está esquecendo. acordo no hospital. a made está na cama ao lado com um monte de tubos enfiados pelo corpo inteiro. eu também estou entulhada de tubos. não tenho a mão direita. a mão e um pedaço do braço. cadê meu braço?”.
Há um certo olhar nostálgico e afetuoso que escapa por entre a aspereza que envolve as histórias desses personagens. O interessante é que ao trabalhar com a primeira pessoa, o autor não cai na armadilha dos diálogos meramente expositivos ou reflexões pseudopsicológicas, coisa que comprometeria não só o ritmo, mas também a verossimilhança dos relatos. O leitor não sabe quem são aqueles narradores e o escritor não nos dá as informações de mão beijada. É através da análise da linguagem e das atitudes deles que podemos ir definindo uma imagem de quem eles possam vir a ser.
O tom das histórias varia e até o humor dá um jeito de encontrar o seu espaço ali entre as brigas do colégio e as surras da polícia:
“aí fiquei com mais medo. óbvio que esses três iam querer pegar a gente depois dessa. na hora até quis dizer pra ele não ir atrás dos caras mas no fundo o que eu queria era que ele fodesse com aqueles piás no mínimo como eles foderam com a gente naquela noite. então fiquei quieto. meio querendo deixar na mão de deus pra ver no que é que ia dar. só que deus é um cara que gosta de ver o cu dos outros pegando fogo com os bombeiros de greve”.
Mas é mesmo a violência o elemento que conecta as histórias. Mesmo que o primeiro cigarro surja aqui e ali como um sinal de amadurecimento precoce, o desejo e o desafio de ocupar um tempo/espaço que ainda não lhe pertence, é mesmo a brutalidade física que acabar expulsar a criança de seu universo e inseri-lo num outro muito mais sombrio, como no conto “Linda Demais”: “o pai dela batia nela. o pai dela batia tão forte na cabeça dela que seus olhos uma vez chegaram a explodir por dentro e o sangue vazou pelo nariz. o sangue viscoso que saía do nariz entrava pela boca e ficava difícil de respirar e raiva dela só aumentava”.
A prosa de Otavio Linhares nos remete a escritores sangue-nos-olhos como Pedro Juan Gutiérrez e Rubem Fonseca, não tanto pela temática, mas por essa maneira seca e direta de soltar as maiores barbaridades, sem aviso prévio, deixando o leitor meio em choque em alguns momentos. Mas percebe-se que o tratamento da linguagem dado pelo autor curitibano aponta para uma coisa bastante difícil de se alcançar: uma voz própria.
A literatura de Otavio Linhares caminha com as próprias pernas. E vai longe.
O CÃO MENTECAPTO | Otavio Linhares
Editora: Encrenca | Arte e Letra;
Quanto: R$ 36,00 (128 páginas);
Lançamento: Maio, 2017.