Cloud Atlas foi publicado na Inglaterra em 2004 e desde então se criou um clima de fascínio pelo livro, que passou a ser encarado com ares de grande acontecimento literário por causa da forma um tanto criativa que David Mitchell arranjou para contar as suas histórias.
O leitor brasileiro (que não lê em inglês, como é o caso deste analfabeto que vos escreve) teve que esperar mais de uma década para enfim poder entender por que afinal tanta gente paga pau pra esse tijolão, pois aquele filme das irmãs Wachowski não ajudou muito. Atlas de Nuvens chega ao Brasil pela editora Companhia das Letras, com tradução impressionante (já, já, entraremos em detalhes) de Paulo Henrique Britto, numa edição luxuosa, com direito a uma caixa linda que justifica plenamente a quebra do orçamento do pobre bibliófilo.
Mas vamos ao que realmente interessa: o que é que esse livro tem de mais? Creio que a resposta a essa pergunta perpassa a questão do conteúdo da obra, mas se concentra principalmente na forma como ela é estruturada do ponto de vista narrativo e linguístico. Em Atlas de Nuvens, David Mitchell criou um quebra-cabeça impressionante, que mistura seis histórias completamente diferentes, construídas a partir de gêneros literários diferentes (diário, romance epistolar, literatura policial, ficção científica, etc,) que se passam em séculos e décadas diferentes e cada qual com um registro linguístico do período específico. Detalhe: todas essas histórias se interligam de alguma forma. Dá pra imaginar o trabalho que deu pra arquitetar uma porra dessas?
Muitos utilizam a expressão “boneca russa” pra exemplificar mais ou menos o que Mitchell fez ali, pois realmente dá a impressão de uma história dentro de uma história, que por sua vez está dentro de outra história que… etc, mas é um pouquinho mais complicado que isso. Dá pra dizer, grosso modo, que o que temos é um diário escrito em 1850, encontrado por um jovem que escreve umas cartas nos anos 1930, que ficaram guardadas durante muitos anos por um personagem dentro de um livro policial dos anos 1970, que foi editado atualmente por um senhor que está num filme de comédia, filme este assistido num futuro distópico por uma pessoa que será considerada uma deusa num futuro pós-apocalíptico ainda mais distante. Pois é, também fiquei com essa cara de espanto/confusão enquanto lia.
O que é que esse livro tem de mais? Creio que a resposta a essa pergunta perpassa a questão do conteúdo da obra, mas se concentra principalmente na forma como ela é estruturada do ponto de vista narrativo e linguístico.
Às vezes esse tipo de coisa escapa por aqui, mas sei que não pega bem subestimar a inteligência do leitor dizendo numa resenha se um livro é difícil, se a história é muito complicada, se a obra não é recomendada para tal tipo de pessoa, etc, pois isso é uma questão bem subjetiva. Veja, por exemplo, as diferentes reações dos leitores de Graça Infinita, a obra-prima de David Foster Wallace, famosa também por sua maneira, digamos, não muito convencional de se contar uma história. Tem gente que ama, tem gente que não entendeu merda nenhuma, tem gente que está tentando ler até hoje. O caso é que, do ponto de vista estritamente pessoal, cheguei a duas conclusões: 1) Atlas de Nuvens é mais “simples” que Graça Infinita, mas não foi das coisas mais fáceis que já li na vida; 2) Adorei essa dificuldade toda.
O livro é desafiador por causa, entre outras coisas, de sua riqueza linguística. E é aqui que voltamos a Paulo Henrique Britto, que não por acaso tem o seu nome em destaque na parte de trás da capa do livro (o nome do autor não aparece na capa, só na caixa). David Mitchell reproduz o registro do inglês de acordo com o período em que se passa cada história, utilizando o mesmo vocabulário e também a grafia da época. O detalhe é que vamos do inglês do período abolicionista, mais arcaico, para um futuro distópico cheio de neologismos e palavras que ganharam novos significados (o termo “calçado” é substituído por “nike”, por exemplo) e às vezes novas grafias em que diversas letras são simplesmente eliminadas.
Britto teve o trabalho hercúleo de verter tudo isso para o português, tendo que pesquisar não apenas o registro da língua naqueles períodos, como também as gírias utilizadas no momento, bem como encontrar soluções para os neologismos, uma vez que não há termos correspondentes em nossa língua para utilizar como base. O resultado é primoroso e alcança o seu auge na sexta história, que se passa num futuro pós-apocalíptico em que acompanhamos pessoas que vivem de forma primitiva e pacífica, mas que passam a ter contato com a tecnologia e a enfrentar novos problemas (repare na característica cíclica dos fatos históricos). O trecho é lazarento de ler, pois é muito fácil confundir tudo e ficar boiando naquele mundaréu de palavras esquisitas, mas, se lido com calma, pode ser um dos momentos mais recompensadores do livro.
O trecho que me parece mais fraco é a história de ficção científica, que fala sobre a revolução despertada por um clone contra um governo totalitário. Tem coisas incríveis ali, com direito a muita filosofia e trechos de ação, mas num geral a coisa toda soa um tanto enfadonha, não traz nada de muito original e conta com muita enrolação. A segunda história, contada através de cartas, é a minha favorita. Seguindo uma vibe meio Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, escrito por Stendhal, acompanhamos a jornada do ambicioso Robert Frobisher em busca do sucesso na música erudita. Ele é um adorável canalha que se mete em algumas roubadas e segue rumo a um destino que já sabemos de antemão que será trágico.
Quase todas as histórias funcionam perfeitamente de forma isolada (talvez a exceção seja o futuro pós-apocalíptico), mas no terço final, quando tudo começa a se conectar de forma mais clara, fazendo a cabeça do leitor quase explodir de tantas ideias e reflexões a respeito da humanidade e do nosso papel na sociedade, a obra atinge um outro nível e então percebemos que David Mitchell conseguiu criar algo realmente grandioso.
Ok, agora deu pra entender porque falavam tanto desse livro.