Virgínia, a protagonista de Ciranda de Pedra (Companhia das Letras, 224 págs), ilustra uma cena que chama de “descrição de uma família”. Em certa medida, é justamente sobre isso o romance. Mas não só.
No início do livro, ela é uma criança, a caçula entre três irmãs cujos pais estão divorciados. Virgínia mora com a mãe, enquanto as outras duas moram com o pai em um casarão tipicamente paulista e burguês. A personagem principal, ainda infante, não compreende completamente os problemas familiares e é constantemente ignorada pelas irmãs. Nós, então, acompanharemos o desenvolvimento pessoal da protagonista, através de seus olhos descobrindo a loucura da mãe, os segredos do padrasto e as razões pelas quais é evitada pelo próprio pai.
O livro, assim como os contos de Lygia Fagundes Telles, é repleto de elementos simbólicos, animais, cores e paisagens muito bem selecionadas para dialogar perfeitamente com as situações e personagens. Por meio deles, é abordado um dos temas principais do romance: a relatividade da realidade, que está sendo espécie de elemento cinematográfico que adquire diferentes dimensões e significados a depender do ângulo e distanciamento da câmera, real distinto da aparência de real.
A ideia de ciranda pode ser interpretada de diversas maneiras. Em primeiro lugar, trata-se claramente de uma alusão à ciranda de anões que enfeita o jardim da mansão, imóvel e impenetrável. Em um segundo momento, a ciranda corresponde àquela composta pelas irmãs da protagonista e seus amigos, ciranda esta que, embora animada, permanece inacessível. Estabelecendo um paralelo entre as duas, pode-se dizer que Lygia põe em cheque a paralisia das relações interpessoais, a estratificação e mesmo o empedramento desumano que atinge o coletivo e condiciona as ações individuais.
Lygia põe em cheque a paralisia das relações interpessoais, a estratificação e mesmo o empedramento desumano que atinge o coletivo e condiciona as ações individuais.
Tanto a Virgínia criança quanto a jovem adulta carregam a impressão de si mesma como inimiga, até que, com o passar do tempo e suas descobertas, o eu transforma-se em seu único aliado. Isso só começa a acontecer com o início de seu processo de autoconhecimento. Quando com a mãe, Virgínia expressa seus extremos, sua intensidade natural. Já com o pai, mantém a postura discreta como a dele e a dos habitantes da grande casa. São vários “eus” em convivência compondo uma ciranda individualmente coletiva.
“Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual. Mil vezes já tentara romper o fio, mas embora os elos fossem diferentes havia neles uma relação indestrutível. E o fio ia encompridando cada dia que passava, acrescido a cada instante de mais uma parcela de vida. Chegava a senti-lo dando voltas e mais voltas em torno do seu corpo numa sequência sem começo nem fim”.
Em certa medida, Virgínia é a representação ambulante da ruptura entre seus pais e também produto desse rompimento, quando o que mais queria era o oposto, reuni-los e restabelecer uma ligação entre eles. Ela permanece no não-lugar, sem pertencer de fato a qualquer dos cenários pelos quais transita. Quanto mais busca fazer parte da família, mais contamina suas personalidade e visão.
Enquanto o outro muitas vezes surge como ser destrutivo, especialmente pelas frequentes comparações, ele é simultaneamente componente dela, de quem ela não pode se desvencilhar (por mais que tente incansavelmente) porque faz parte de quem ela é. Lygia respeita e considera as complexidades da condição humana e renuncia mais de uma vez as pobrezas da bipolarização certo/errado, bom/ruim, heroi/vilão.
“Ouça, querida”, disse Otávia certa vez, “não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa, nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes a gente melhora. Mas passa.”
Embora a linguagem do romance seja fluida, informal e fácil de acompanhar, ela não impede a criação de belas metáforas no livro. Silviano Santiago chegou a denominá-la de “linguagem alucinatória”, já que, sendo discurso indireto livre, é extremamente interior, representativa da confusão mental da protagonista e que se desenvolve junto com ela, amadurecendo também, sem perder a honestidade.
Essa linguagem é tão pessoal, tão representativa de Virgínia e suas alucinações que, em carta escrita à Lygia sobre o romance, Drummond caracteriza a personagem principal como autora. É como se ela tivesse escrito Ciranda de Pedra, pois a linguagem é toda dela e isso cria um livro perturbador e envolvente, muito por conta da solidão e da introspecção características da protagonista.
O foco na interioridade de Virgínia reforça a distinção desta em relação aos demais: ela, profunda, criativa e imaginativa; eles, superficiais, habitando o terreno das aparências. Quando começa a lidar maduramente com sua condição de indivíduo independente, Virgínia faz cair os véus que transformavam em divindades pessoas e relações frívolas. É por seus “olhos delatores” que a verdadeira essência das personagens nos é revelada. Esse é o amadurecimento necessário. O final da obra é também muito simbólico para o sentido de aceitar e acolher a si mesmo apesar dos outros.
Tudo isso, somado à capacidade lygiana de encaixar em pequenos trechos tudo – ou quase tudo – o que há de mais significativo na história, faz com que Ciranda de Pedra seja um dos melhores romances de formação da literatura brasileira, inspirando adaptações televisivas e indicado aos mais variados públicos.
CIRANDA DE PEDRA | Lygia Fagundes Telles
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 224 págs;
Lançamento: 1954.