Roberto Bolaño (1953 – 2003) costumava dizer que toda os gêneros literários não eram nada mais que desdobramentos da literatura policial. Essa teoria, que fica bastante clara em Monsieur Pain, Putas assassinas e Pista de gelo, já existia antes mesmo que o escritor chileno a colocasse no mundo. Confissão de um assassino, novela de Joseph Roth (1894 – 1939) escrita durante o seu exílio em Paris – quando a perseguição aos judeus já começava a se acentuar –, remete a essa tradição invisível, mas também às condições do próprio escritor – um homem em fuga quase que perpetuamente.
Narrado em uma única noite, em um bar de expatriados russos – que abandonaram o país após a Revolução de 1917 –, Confissão de um assassino remonta os eventos que fizeram do camponês Golubtchik um homem mergulhado em paixão e desespero. A partir de elementos do romance noir, Roth constrói um breve tratado sobre o entendimento da natureza humana, explorando o egoísmo, as vaidades e as vulnerabilidades que se escondem sob o verniz da coragem e do desajuste social.
O centro da narrativa de Joseph Roth é imersão no espírito do tempo, alimentado de um certo olhar sobre o futuro. Golubtchik resume bem as estruturas sociais – filho ilegítimo de um príncipe com a esposa de um guarda florestal e, posteriormente, atirado aos leões ao ser obrigado a servir a polícia secreta do czar – e dá corpo a certo sentimento de inadequação, como os que permeariam a obra fílmica e literária de Pasolini (1922 – 1975). Ao mesmo tempo, esse sujeito ora infame e ora encantador, fruto das relações de poder e dominação, sintetiza as ideias de Rousseau (1712 – 1778) sobre o nascimento do mal e da corrupção como exterior à gênese do homem.
Roth constrói um breve tratado sobre o entendimento da natureza humana, explorando o egoísmo, as vaidades e as vulnerabilidades que se escondem sob o verniz da coragem e do desajuste social.
Em seu livro, Roth é capaz de iluminar cada detalhe em uma prosa elegante e brutal. E ao se apropriar dessa aparente antítese, o escritor faz do seu narrador uma Sherazade, alguém que conta histórias para não morrer e para impedir que a tragédia também recaia sobre aqueles que o ouvem.
Paralelos
Publicado em 1936, Confissão de um assassino funciona bem como um manifesto de sobrevivência durante um dos tempos mais duros para o povo judeu. Em paralelo, reflete as inúmeras impossibilidades pessoais de Roth, dos progroms, ao abismo do alcoolismo e à solidão imposta pelo exílio. Como um retrato de si, os personagens de Roth são homens jogado à própria sorte, carregados pelas marés políticas e econômicas.
Como Bruno Schulz (1892 – 1942), escritor e pintor polonês assassinado a tiros por um oficial nazista, Joseph Roth expunha na sua literatura os colapsos do cotidiano que levam o homem à tentativa, quase sempre fracassada, de escapar da realidade. As obras de ambos se entrelaçam na ficção como um elemento de interpretação da realidade. A diferença, porém, está na abordagem: Schulz se debruça sobre o onírico, o absurdo kafkiano, o terror à margem, enquanto Roth busca uma prosa realista e que esmiúça até mesmo aquilo que parece banal e apagado.
A despeito de ser uma obra com várias marcas temporais, é impossível não pensar no sentido figurativo de Confissão de um assassino como uma premonição do repeteco avassalador da barbárie. São muitos os pontos de contato, mas, acima de tudo, o revisionismo, o ódio construído através da mentira e da necessidade irrefreável pela invisibilidade do outro.
Confissão de um assassino é uma novela sedutora, mas é também um espelho do tempo, capaz de conjugar passado e futuro de uma maneira assombrosa e bela.
CONFISSÃO DE UM ASSASSINO | Joseph Roth
Editora: Mundaréu;
Tradução: Marcus Tulius Franco Morais;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Julho, 2020.