Como já discuti por aqui, os contos de fadas não nasceram com esse jeitão Disney com o qual nos acostumamos nas últimas décadas. Em suas origens, eles se dirigiam também aos adultos e eram histórias malignas, cruéis, cheias de violência e gente perturbada cometendo e sofrendo atrocidades. Os enredos vinham da tradição oral, daquele esquema de passar crenças, lições de moral e alguns costumes adiante através da fabulação.
A escritora russa Liudmila Petruchévskaia resgata um pouco dessa tradição em Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha, e essa mistura de contos de fadas e programa do Datena presente no título irresistível do livro dá uma boa dimensão do que trata a obra.
A autora parte de uma estrutura narrativa e de uma linguagem de história infantil para então nos inserir num enredo que não demora a nos jogar num universo sinistro, cheio de sombras que dão formas aos nossos medos projetados na parede. Sugiro não deixar esse livro perto de criancinhas.
Há contos em que a autora já chega com os dois pés na cara, como em “O Milagre”:
“Uma mulher tinha um filho que se enforcou. Quer dizer, quando ela chegou em casa do plantão noturno, o menino estava estirado no chão, ao lado dele havia um banquinho tombado e do lustre pendia uma cordinha de náilon. A boca do rapaz estava ensanguentada, no pescoço se avistava uma listrinha vermelha”.
A autora parte de uma estrutura narrativa e de uma linguagem de história infantil para então nos inserir num enredo que não demora a nos jogar num universo sinistro, cheio de sombras que dão formas aos nossos medos projetados na parede.
Perceba como é possível dizer coisas horríveis com palavras simples. E esse tom infantil, esses “quer dizer”, “banquinho”, “listrinha”, é que fazem a coisa toda ser tomada por certa estranheza, pois parece que uma professora de pré-escola está lendo o teleprompter do Alborghetti pras crianças.
Na internet, volta e meia aparece uma história (já vi até em forma de HQ) do pai que está em casa à noite, ouve gritos vindo do quarto da filha e quando chega lá, vê a garota na cama e ela sussurra no seu ouvido: “pai, tem alguém escondido no meu guarda-roupa”. Quando ele abre o guarda-roupa, a filha está encolhida lá dentro e diz “pai, tem alguém na minha cama”. Gosto de um elemento fundamental nessa história: pressupondo que a primeira garota é uma entidade, fantasmas, sei lá (uma das interpretações possíveis), ela sussurrou no seu ouvido e aquilo não o assustou, pois havia uma aparência de normalidade. O gelo na espinha só surge quando ele recebe uma informação posterior de que talvez aquela (aquilo?) não seja a sua filha e aí a normalidade já implodiu.
A escritora russa, em diversos contos, explora muito esse recurso de alguém que passa por uma situação normal e só depois descobre que aquilo não era tão normal assim, e aí já era, a pessoa precisa lidar com um horror imediato que diz respeito a algo que já passou, como se o medo fosse uma lembrança que se derrama sobre a pele. Nem todas as histórias funcionam, pois esbarram na previsibilidade, mas em alguns casos o leitor não escapa de um soco no estômago.
Tal como a argentina Mariana Henriquez, que escreveu aquele que considero o melhor livro publicado no ano passado, Petruchévskaia vai bem além do entretenimento e consegue mesclar elementos do horror às feridas históricas de seu país, no caso, a Rússia. No melhor conto do livro, chamado “Higiene”, temos um enredo apavorante sobre uma família presa dentro de casa em virtude da peste negra. Inclusive tal como no livro de Henriquez, temos aqui uma criança como elemento que nos faz borrar de medo.
Questões relacionadas à pobreza, ideologias políticas, maternidade, tradições, valores, etc incrementam histórias que, em sua maioria, flertam com horror ora de forma bastante evidente com coisas sanguinárias e tal, ora de maneira mais sugestiva, apostando muito em simbologias e metáforas. Alguns contos pendem mais para a fantasia e aí a autora não se sai tão bem, pois as histórias perdem muito do seu impacto.
De modo geral, Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha faz valer o seu título sinistro e nos entrega essa mistura estranha e maravilhosa de universo infantil, lado podre da Rússia e literatura especulativa, tudo isso moldado por uma imaginação de uma senhora que aparentemente não é das mais normais.
Vai fundo, mas deixe as luzes acesas.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]ERA UMA VEZ UMA MULHER QUE TENTOU MATAR O BEBÊ DA VIZINHA | Liudmila Petruchévskaia
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Cecília Rosas;
Tamanho: 268 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2018.
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