Em 1924, Thomas Mann publica o consagrado calhamaço A Montanha Mágica. O livro narra a ida de Hans Castorp, engenheiro naval recém-formado, ao sanatório para tuberculosos Berghof, localizado em uma alta montanha suíça, onde pretende passar poucas semanas com o primo Joachim, um dos enfermos ali instalados. Qualquer sinopse desse bildungsroman (romance de formação) é aparentemente simples, mas essa simplicidade é completamente contradita ainda em sua primeira página, na qual o narrador inicia o relato abordando imediatamente, e de forma excepcional, aquele que será o elemento-chave do grande romance: o tempo.
Por abrigar quase que exclusivamente membros da elite europeia, o sanatório acaba transformado em uma espécie de microcosmo, pequeno universo onde a alta classe permanece isolada, voluntária ou involuntariamente. Tal isolamento lhes oferece uma nova perspectiva acerca de aspectos banalizados da vida humana, dentre eles o tempo. Afastados da cidade grande e de seu cotidiano desassossegado, regido pelo aproveitamento de cada segundo como possibilidade de obter capital, os residentes de Berghof dispõem de uma posição privilegiada em relação ao restante dos povos, que vivem no ritmo próprio de quem está à beira de uma Guerra Mundial.
Na montanha mágica eles podem observar superiormente o restante do mundo, assentados em um espaço no qual o tempo não funciona mais como sinônimo de dinheiro e oportunidade de progresso, ou seja, em um espaço em que não é mais necessária tanta pressa nas ações e que, portanto, disponibiliza pausas para reflexão e ressignificação de certas dimensões fundamentais da existência humana, já trivializadas por sua aceitação impensada.
Na montanha mágica eles podem observar superiormente o restante do mundo, assentados em um espaço no qual o tempo não funciona mais como sinônimo de dinheiro e oportunidade de progresso.
De todos os padrões reconfigurados, o tempo merece destaque, não só por passar por um significativo processo de reformatação, mas também por tal refiguração estar refletida na estrutura formal da obra. Em A Montanha Mágica, não há qualquer determinação exata de tempo. Na verdade, na narrativa não existe um ritmo temporal a ser seguido: suas primeiras 200 páginas, por exemplo, contam apenas o primeiro dia do protagonista no sanatório. Portanto, por parte do leitor é necessário abstrair e transportar-se, como que materialmente, a Berghof, viver ali junto com os personagens e experimentar as mudanças provocadas pelo lugar. Do mesmo modo como eles se deslocam de seu habitat natural na sociedade, quem lê deve também deslocar-se de seu posto habitual e abraçar as particularidades do mundo criado por Thomas Mann.
O fato de a história ter sido escrita no período entre-guerras, sem que os participantes do romance tenham certeza do conflito que virá em breve, enriquece as interpretações do livro. A retirada de personagens cujos interesses estariam em risco em uma guerra, para um lugar que garante a observação favorecida da movimentação citadina, estimula a tessitura de uma crítica aos novos padrões sociais impostos pela época que antecede a batalha e de um retrato do efeito dessa nova realidade sobre o grupo social em questão. De fato, quase não há personagens de qualquer outra classe social em A Montanha Mágica, e isso não é à toa. Cabe ao leitor sentir a falta dos economicamente menos beneficiados e perguntar-se: que espaço lhes cabe durante essa fase da história?
Interrogações assim são engendradas, especialmente, por dois personagens importantíssimos à trama. O primeiro deles é Settembrini, filósofo humanista, e o segundo é Naphta, jesuíta judeu convertido ao cristianismo. Os dois são fortes influenciadores de Hans Castorp e roubam o protagonismo em muitas cenas do livro. Eles travam entre si debates sobre os mais diversos assuntos, questionando proposições praticamente inquestionáveis dadas suas complexidades. Além disso, eles discordam um do outro a respeito de quase tudo. Suas visões divergentes acerca do tempo, da política, da religião, e de tantos outros assuntos incontornáveis, os fazem discutir, defendendo seus pontos de vista com garra, maestria e inteligência.
Diante dessas pelejas, Hans Castorp permanece em cima do muro, enquanto ambos tentam convencê-lo a adotar sua própria doutrina. Do mesmo modo, o leitor achega-se ao protagonista e se vê muitas vezes perdido, confuso, ora convencido pela filosofia de um, ora pela filosofia de outro, incapaz de absorver em uma primeira leitura toda a carga de informações e teorias oferecidas por eles. O final das duas personagens é extremamente simbólico e, previsivelmente, trágico.
Ao qualificar A Montanha Mágica como a descrição da descoberta do “mais profundo conhecimento da doença e da morte”, Thomas Mann faz com que as duas marquem sua presença desde o início até o final da obra, atuando como foco, sujeito e objeto da narrativa. Elas são abordadas, acolhidas e tratadas de forma diferente pelos pacientes do sanatório, afinal, para todos eles a doença já lhes é constituinte e o óbito, apenas uma questão de tempo. Cruelmente o autor explicita a infalibilidade da morte, sina inevitável dos homens. No livro, ela está sempre próxima e vestida sob duas capas medonhas: a enfermidade ou a guerra.
O relacionamento do protagonista com a misteriosa e encantadora Clawdia Chauchat, hóspede russa, interrompe, em certa medida, a insistência em discutir o tempo, a morte e a doença e abre espaço para outra noção igualmente labiríntica, mas menos tóxica: o amor. O fascínio de Castorp por Mme. Chauchat suspende provisoriamente as preocupações inconclusas do engenheiro e intervém como filtro aos estímulos intelectuais de Settembrini e Naphta. A relação dos dois é a maior responsável pela construção de uma visão única de mundo por parte de Hans, é o que o diferencia dos outros, determina sua individualidade.
Cabe destacar o diálogo em francês dado entre eles, ponto alto do romance. A escolha da língua francesa também não é mero acaso: a sonoridade do idioma colabora para a atmosfera onírica pretendida pelo autor para o momento em que a paixão se revela. Sendo o francês a língua dos sonhos, a língua do amor, qualquer outra seria insuficiente para transmitir a mensagem desejada por Mann e seus personagens. O francês potencializa e relativiza a conversa.
Em suma, A Montanha Mágica é um livro que transforma quem o lê. O livro abrange o bem e o mal, faz caber o mundo em suas páginas e, além de tudo isso, traz um final arrebatador, inesquecível e impiedoso. Thomas Mann concede a Castorp e aos legentes múltiplas verdades, conceitos e possibilidades, sem tender a um lado específico.
O leitor de A Montanha Mágica é independente para escolher o próprio caminho entre as inúmeras alternativas elencadas no livro, todas invejável e igualmente bem defendidas e embasadas. A grandeza da montanha mágica nos faz reconhecer quão mínimo é aquilo que Walter Benjamin, contemporâneo de Mann, chamou de “minúsculo corpo humano”. Somos, de fato, pequenos, e é necessário, vez ou outra, nos isolarmos para assumir tal pequenez. Que seja, então, nessa montanha.
A MONTANHA MÁGICA | Thomas Mann
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Herbert Caro;
Tamanho: 736 págs.;
Lançamento: 1ª edição, editora Panamericana, 1943; atual edição, Companhia das Letras, 2016.