Nascido em 1828, Lev Tolstói foi um dos mais importantes escritores russos da segunda metade do século XIX. Proveniente da alta aristocracia russa, iniciou uma carreira como oficial do exército ao lado do irmão, em 1851, mas, com o desgosto que adquire em suas experiências, se demite cinco anos depois. Nesse momento, Tolstói já tinha publicado alguns livros e dava sinais de sua habilidade literária em livros como Infância (1852) ou Adolescência (1853).
Após largar o exército, o escritor passa por um período de viagens pela Rússia e países próximos, como França e Alemanha, onde tem contato com a realidade do território eslavo e o seu processo de modernização – momento, conforme discutido na resenha de Memórias do Subsolo, de Fiodor Dostoiévski, que reunia uma vertente adepta ao progresso e aos influxos da Europa versus um grupo de intelectuais que defendia a pureza russa. Em seu posicionamento político, Tolstói decide se mudar para a pequena cidade de Iásnaia-Poliana, onde se dedica integralmente à educação de mujiques (camponeses russos).
Nesse período, Lev escreve e publica grandes romances, como Guerra e Paz (1867) e Anna Karenina (1877). Nessa primeira fase do escritor, há um tipo de romance que descreve os costumes da sociedade russa e faz uma espécie de revisitação histórica. Conforme dito por Nicolas, no canal “las hojas muertas y otras hojas”, elabora temas caros à conjuntura literária russa da segunda metade do séc. XIX.
No entanto, Tolstói vai se afastando desse tipo de produção literária e se dedica ao desenvolvimento do tolstoísmo: uma doutrina de vago misticismo do escritor que, com base em alguns pressupostos religiosos e filosóficos, estabelecia algumas práticas pacifistas. A partir desse ponto, Lev Tolstói passa a escrever uma literatura com propósito moralizante, comprometida com sua visão religiosa. Servem de exemplo do momento o livro Confissão (1882), onde o escritor condena seu passado e sua atividade literária pregressa.
Nesse trajeto, A morte de Ivan Ilitch (1886) marca um ponto fora da curva onde Tolstói conseguiu unir a face moralizante com a do desenvolvimento literário e escreveu, segundo Nabokov, uma das maiores obras da literatura russa. Nessa novela, acompanhamos a Ivan Ilitch, um juiz de instrução que, como escreve Tolstói, teve uma vida “das mais simples e comuns e, ao mesmo tempo, das mais terríveis”.
A narrativa começa com o anúncio da morte de Ivan Ilitch por meio de uma notícia no jornal. Com essa descoberta, alguns antigos colegas de trabalho vão prestar homenagens ao falecido e sua viúva, mas logo a imagem do luto começa a desfalecer e evidenciar a insensibilidade do ambiente social por meio do alívio (enunciado por pensamentos como “antes ele do que eu”), com o interesse nas promoções profissionais, agora que o cargo estava livre, e o empenho da viúva em conseguir arrancar do governo a maior quantidade de dinheiro possível pela morte do marido.
A partir dessa abertura, quase como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, um narrador onisciente nos apresenta a vida pregressa de Ivan, desde sua infância. Seu retrato é o de um homem medíocre por excelência. De seus três irmãos, era o segundo: “Não era frio e meticuloso como o mais velho, nem temerário como o caçula. Constituía o termo médio entre eles: uma pessoa inteligente, viva, agradável e descente”. Conforme amadurecia, se tornava um severo cumpridor do seu dever, considerando “como seu dever tudo aquilo que consideravam como tal as pessoas mais altamente colocadas”.
Sendo assim, se Ivan Ilitch não tem nada de heroico, por que nos interessa sua história? Justamente por isso: mesmo o ser mais prosaico possui sua individualidade. Essa perspectiva é contraposta ao descaso da sociedade burguesa, onde o sujeito não importa.
Ao longo de seu envelhecimento, Ivan vive uma vida de ascensão social até que uma doença terminal o abate. Acamado, a proximidade da morte lhe traz uma revisão sobre a mortalidade e os valores da vida da alta burguesia russa. Como diz Paulo Rónai, no apêndice do livro, a partir desse processo Tolstói faz uma “impiedosa crítica a toda uma forma de viver, a uma série de práticas sociais que visam unicamente as aparências e não satisfazem as nossas íntimas necessidades de amor e comunhão”.
Dentro desse contexto, Lev Tolstói configura, por conta da mediocridade do seu personagem, uma condição humana bastante abrangente. Parte disso se deve ao desenvolvimento da imagem do “pequeno homem” (málenki tchelóvek) na literatura russa. O modelo do personagem burocrata já tinha sido utilizado como personagem cômico, visto em O Capote, de Gogol. Dostoiévski deu a ele uma dimensão psicológica, mas foi Tolstói que acrescentou ao modelo uma face do contexto social.
Sendo assim, se Ivan Ilitch não tem nada de heroico, por que nos interessa sua história? Justamente por isso: mesmo o ser mais prosaico possui sua individualidade. Essa perspectiva é contraposta ao descaso da sociedade burguesa, onde o sujeito não importa. Ao ser examinado por um médico, Ivan identifica o tratamento que deu aos outros enquanto juiz, visto no seguinte trecho depois de um diagnóstico: “Tudo isto era exatamente o mesmo que o próprio Ivan Ilitch fizera mil vezes, com o mesmo brilhantismo, em relação a um acusado. De maneira igualmente brilhante, o doutor fez o seu resumo e, com ar triunfante, alegre até, lançou um olhar por cima dos óculos, para o acusado. Ivan Ilitch concluiu desse resumo que as coisas iam mal, embora isto fosse indiferente ao médico e talvez a todos os demais”.
Dessa forma, a única companhia que resta a Ivan é Guerássim, um mujique humilde que o entende e se torna sua única companhia, sem negar a inevitabilidade do fato e capaz de realizar pequenos sacrifícios para trazer momentos prazerosos aos últimos momentos de Ivan. Tal visão crítica sobre a sociedade burguesa, unida à fatalidade da morte, faz com que a novela de Tolstói seja muito atual nos dias de hoje, mas traz consigo uma moral ambígua: por um lado, os sentimentos de ódio, rancor e a própria ideia de morte somem nos últimos momentos de Ivan, quando ele compreende o sofrimento dos vivos e é inundado por um sentimento de compaixão. Por outro, como afirma Paulo Rónai, “tão forte é a sensação de espanto evocada e transmitida pelo autor, que esquecemos tratar-se do caso de um homem que expia as mentiras de uma vida vazia (…) e ficamos com a impressão de que todo morrer é horrível e a única realidade do nosso mundo é a morte”.
A MORTE DE IVAN ILITCH | Lev Tolstói
Editora: Editora 34;
Tradução: Boris Schnaiderman;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2006.