Os relatos referentes a uma chamada “maternidade real” nunca foram tão profícuos. Em alguma medida, estes múltiplos testemunhos – que prometem descrever uma experiência de maternagem menos idealizada – costumam também se associar a certos movimentos mais fortes nos últimos anos em prol de uma abordagem menos técnica da gravidez, do parto e de tudo que os envolve. Mas se, ao invés de ouvirmos as “mães reais”, resolvêssemos escutar os “médicos reais”?
A premissa do romance A Pediatra, de Andréa del Fuego, é ousada. Sua protagonista, Cecília, é uma pediatra neonatologista não exatamente afeita a mães e a crianças. Narrado em primeira pessoa, a médica é um poço de cinismo. Olha o ofício – e as mães – com um certo escárnio, mesmo desprezo. Sua abordagem da medicina é simplesmente técnica, sem paixão. Filha de outro médico, mais dedicado que ela, Cecília, em determinado momento, aborrece-se com o que chama de “mães pâncreas”, que ficam o tempo todo tensas em torno de seus filhos de saúde frágil.
Em resumo, a personagem encarna tudo que não se espera de uma médica que lida com crianças. No entanto, a obra logo revela que nada tem muita importância para Cecília: nem seu trabalho, nem seu casamento com um homem depressivo, que não dura mais que as primeiras páginas do romance. A pediatra detesta tudo que envolve visões humanizadas do parto e desconstrói esses discursos de forma sarcástica. Tem pavor de doulas, de parto domiciliar, de mães naturebas que colocam fraldas de pano em seus bebês. Seus comentários são ácidos. Para se aproximar de arqui-inimigo – um novo pediatra desconstruidão que parece estar se tornando o queridinho de todas as grávidas -, se finge de gestante e se enfia numa escola de ioga chamada Mãe Prana, frequentado por “grávidas prontas para se opor ao sistema médico do Itaim, sem sair do Itaim”.
Mas é claro que o romance logo se centra em um conflito, que é desencadeado quando Cecília conhece um homem aleatório, casado com uma mulher que está grávida, e que logo se torna seu amante. Por mais que Celso, o amante, não tenha muitos encantos (e Cecília também não parece exatamente encantada por ele), o namoro logo funciona como um gatilho para que a pediatra acesse partes de si que prefere ignorar. Ela passa a se comparar com a mulher grávida, a “esposa de canela grossa”, no intuito de agarrar-se à vida que tem – com um corpo intocado por gravidezes, sem preocupações materiais, nem com o peso nas costas do cuidado de crianças ou de qualquer pessoa além de si mesma. Num gesto bizarro de Celso (que não chega a entrar no foco da narrativa – sabemos pouco sobre suas motivações), Cecília acaba participando do parto da mulher do amante e ajuda a trazer ao mundo o pequeno Bruninho.
Com delicadeza, Andréa Del Fuego constrói uma protagonista multifacetada, tão sarcástica quanto frágil.
E é partir daí que a frágil estabilidade de Cecília começa a sofrer abalos. A tensão ocorre nas poucas relações que ela ainda mantém: com o amante Celso, cujo foco é a própria família; com o pai, seu único porto seguro; e com a empregada Deise, encarregada por garantir que a casa da pediatra esteja sempre impecável. Quando Deise aparece grávida de um garçom de uma pizzaria do bairro, os limites da relação entre patroa e funcionária também passam a ruir (nesse sentido, A Pediatra me lembrou um pouco Suíte Tóquio, romance de Giovana Madalosso). Aos poucos, Deise começa a tornar-se mãe na casa da chefe, deixando de ser apenas o seu (invisível) braço direito.
Nas entrelinhas de um romance que parece voltado ao humor, A Pediatra se revela gradativamente mais triste. Com delicadeza, Andréa del Fuego constrói uma protagonista multifacetada, tão sarcástica quanto frágil. Conforme se desenrola a trama, descobrimos que Cecília é alguém que esconde algo – não dos leitores, mas de si mesma.
E por meio dessa empreitada vazia, a médica cria uma obsessão pelo bebê Bruninho, o filho do amante que ela segurou nos braços e a que se refere, em seus pensamentos, como “meu menino”. Mais uma vez, parece-me aqui que há um diálogo (provavelmente involuntário) com Suíte Tóquio, em que uma empregada/ babá sente amar o filho da patroa mais do que a própria mãe. Em A Pediatra, essa dinâmica é mais provocativa: é uma amante que se apaixona pelo filho do homem que trai a esposa.
Romance curtinho, A Pediatra tem a medida certa para nos dar a chance de nos encantar e desencantar com essa mulher atípica, uma “anti-médica”. Em meio a tantos relatos de maternidade real, cujos “defeitos” parecem configurados para aparecer bem no Instagram, dá até um certo alívio ver o tema abordado de forma um tanto desagradável. Cecília tem um pouco de cada uma de nós – mesmo aquelas que querem se opor ao sistema médico sem sair do Itaim.
A PEDIATRA | Andréa del Fuego
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Outubro, 2021.