Muita gente conhece o Cujo ou pelo menos já deve ter visto aquele imagem antiga de um São Bernardo gigantesco, tipo um Beethoven do capeta, aterrorizando mãe e filho dentro de um carro, mas poucos tiveram a oportunidade de ler o livro que deu origem ao filme de 1983. Isso porque Cão Raivoso, título da primeira tradução, foi lançado nos anos oitenta aqui no Brasil e há décadas não dava as caras nas livrarias. Nada de relançarem o coitado do livro a despeito de todo o sucesso de vendas de seu autor neste meio tempo.
Pois bem, a Suma de Letras corrigiu esse problema e foi além, eles não apenas relançaram Cujo, agora com o título original, na tradução de Michel Teixeira, como também o fizeram numa edição bem mais caprichada que o normal, com capa dura (coisa rara por aqui em se tratando de Stephen King) e com um extra: uma entrevista excelente que o autor deu à Paris Review, falando sobre a sua carreira, sobre literatura de gênero, a crítica, etc.
O romance conta a história de um cachorro que acaba sendo mordido por um morcego infectado, contrai raiva e torna a vida das pessoas um inferno. Embora um enredo assim dê a entender que o cão fica louco e sai por aí matando várias pessoas, há uma considerável quebra de expectativa, pois Stephen King resolve concentrar praticamente todos os trechos de ação e terror num só local, uma oficina mecânica no meio do nada, com pouquíssimas pessoas ao redor. É a partir deste microcosmos que ele discutirá não apenas a nossa relação com o medo, como também o nosso desmoronamento emocional diante de situações de extremo isolamento.
O autor fez algo semelhante em Jogo Perigoso, um livro que é basicamente sobre uma mulher amarrada numa cama. O livro inteiro. No fabuloso Misery – Louca Obsessão também temos praticamente apenas a casa da simpática Annie Wilkes como cenário. Nas mãos erradas, este tipo de história teria muitas chances de ser apenas entediante, mas nas mãos de um mestre do suspense, aquilo se torna um tormento psicológico dos mais perturbadores. Enfim, em Cujo, King cria um ambiente claustrofóbico nos momentos mais tensos, mas vai quebrando o clima e jogando com a ansiedade do leitor, ao montar a narrativa a partir de pelo menos três pontos de vista, de pessoas que não estão naquele local.
Em Cujo, King cria um ambiente claustrofóbico nos momentos mais tensos, mas vai quebrando o clima e jogando com a ansiedade do leitor.
Os protagonistas, além do cachorro encapetado, tão assustador e violento quanto no filme, são Tad, um garotinho que anda vendo umas coisas estranhas em seu guarda-roupa, e Donna, a sua mãe. Há toda uma trama rocambolesca, envolvendo um triângulo amoroso e um carro estragado, que os levará para perto do cão raivoso. O filme dirigido por Lewis Teague (que continua excelente ainda hoje) praticamente ignora todos os outros pontos de vista e concentra toda a narrativa na mãe e no filho dentro do carro, num calor infernal, com fome e sede, pensando num jeito de escapar. Já o livro mostra o ponto de vista do marido traído que está viajando, do cachorro (!?), do amante e até da família do dono da oficia.
Todas estas narrativas paralelas podem parecer pura enrolação, principalmente para quem já viu o filme. Em alguns momentos dá a impressão de que Stephen King está testando a sua paciência ao falar de coisas irrelevantes enquanto os dois personagens principais estão lá se fodendo dentro do carro. Mas lá para o meio do livro você começa a perceber que há ali um comentário interessante sobre o comportamento social, sobre o papel da mulher num mundo estruturado por uma cultura que lhe cobra subserviência, sobre a desintegração de um modelo familiar tradicional com valores já meio alquebrados. Estes valores são colocados em xeque o tempo todo e aí você repara que talvez aquilo ali seja um pouco mais do que apenas uma história de terror. O próprio fato do marido publicitário estar tão preocupado com uma campanha de cereal ao mesmo tempo em que a sua vida pessoal está desmoronando, diz muito sobre o modelo de sonho americano que King pretende retratar.
O desenvolvimento da ação é bastante lento, as inúmeras coincidências se encaixam e se tornam razoavelmente críveis. Stephen King prepara o terreno de modo a inserir o leitor num ambiente familiarizar, num cotidiano banal com seus conflitos, seus clichês e previsibilidades, para logo em seguida esfregar o horror na nossa cara.
Mais uma vez temos o ato de colocar pessoas comuns vivendo situações absolutamente incomuns. King é muito bom em fazer isso, possivelmente um dos melhores.
Para os fãs mais hardcore do autor [com SPOILERS]: Cujo se passa em Castle Rock, cidade fictícia no Maine, cenário de várias de suas histórias. Já no início do livro, comenta-se que a cidade ainda está agitada com a morte de Frank Dodd, o policial que matou diversas mulheres durante os anos 1970. Dodd é o assassino de Zona Morta, outro livraço de King, que foi levado para os cinemas com o título de A Hora da Zona Morta. Fora isso, temos George Bannerman, o xerife da cidade, novamente em ação. O interessante disto é que temos então duas histórias que ocorrem na mesma época, no mesmo local e até com as mesmas pessoas envolvidas, mas em uma há elementos sobrenaturais e na outra não.
Stephen King continua bastante prolífico (ainda bem, que continue assim) e tem lançado livros divertidos, mas que ficam à sombra daquilo que ele produziu nas décadas de 70/80, período em que curiosamente ele estava atolado nas drogas e no alcoolismo, tanto que diz nem lembrar direito de como escreveu Cujo, de tão bêbado que estava na época.
Enfim, os livros novos são bacanas, mas os antigos, ah, os livros antigos, estes são sempre como aquela sensação gostosa de voltar para casa após uma longa viagem.
CUJO | Stephen King
Editora: Suma de Letras;
Tradução: Michel Teixeira;
Tamanho: 276 págs.;
Lançamento: Outubro, 2016.