Não foram poucas as madrugadas da juventude em que caminhei pelo centro de Curitiba, tropeçando em alguma desilusão amorosa ou na amarga constatação da falta de rumo na vida. O álcool a girar na mente em forma de angústia trazia consigo certa clareza que atravessava a neblina gelada, e então era como se fosse possível, enfim, tocar o mundo, mesmo que de forma um tanto triste e decadente, e se sentir um pouco vivo. Era tipo uma lucidez embriagada. Coisa de bêbado, você sabe.
Eis que ao vagar pelas páginas de Dias Nublados, lançado pela editora Arte & Letra e escrito pelo curitibano Luiz Felipe Leprevost, me vi transportado novamente para aqueles dias que ficaram adormecidos em algum lugar da década passada, lá pelas esquinas vomitadas do bairro São Francisco. Quando um livro conversa dessa maneira direta com você, meu amigo, ele desperta uma espécie de maravilhamento e a literatura se torna então uma coisa muito poderosa. É bem foda e quem já leu o livro certo na hora certa sabe do que estou falando.
O narrador de Leprevost vaga pelas ruas da capital paranaense num presente todo contaminado de passado. Ao se deslocar do centro para a chácara da família num bairro mais afastado, é como se caminhasse num chão enlameado de sonho ou pesadelo, em que não se consegue fugir da ameaça que se aproxima. E a ameaça aqui são as memórias. Mesmo aquilo que há de bonito, já que não somos feitos só de tragédias, arde no peito, pois está cravado num tempo que se foi. É como ver aqueles que amamos irem amarelando, aprisionados em fotografias dentro de caixas de sapatos em cima do guarda-roupa.
Quando um livro conversa dessa maneira direta com você, meu amigo, ele desperta uma espécie de maravilhamento e a literatura se torna então uma coisa muito poderosa.
O primo que morreu de forma trágica, a iniciação sexual, o cheiro do café na mesa da família. Essas lembranças vão permeando a mente do protagonista, enquanto ele flana por uma cidade que obviamente mudou muito com o passar dos anos, mas que guarda em suas ruínas, sob as sobras das araucárias agora meio urbanas, ecos tão docemente nostálgicos quanto doloridos.
Não sei dizer se o clichezão do “a cidade é um personagem” cabe aqui, mas com certeza o leitor que tiver uma noção razoável da geografia de Curitiba acabará tendo uma experiência de leitura mais completa. O livro é bem curtinho (infelizmente), mas mesmo assim consegue dar conta da enorme variedade sociocultural da cidade, tornando bem clara as diferenças que existem entre as regiões. Diferenças estas que acabam por se misturar de maneira quase harmoniosa e um tanto etílica no centro, mais precisamente ali pelas bandas do Largo da Ordem.
Embora seja composta por frases curtas, a prosa de Leprovost não é seca e flerta belamente com a poesia e suas aliterações. Mas sem afetações que truncam a leitura, pois a narrativa de Dias Nublados possui uma boa fluidez que faz você não querer largar o livro. Por possuir, entre outras coisas, refinamento da linguagem e ao mesmo tempo preocupação em contar a história, em fazê-la caminhar junto com seu personagem, sem se perder em firulas estéticas, a obra se mostra um trabalho de um escritor maduro, com pleno domínio de seu universo ficcional.
Ler Dias Nublados é uma oportunidade de caminhar pelo petit pavé curitibano, numa madrugada qualquer do inverno, e sentir que aquele vento gelado toca não apenas o seu rosto, mas o de tantos outros que resguardam suas próprias solidões enquanto a próxima geada não chega.
DIAS NUBLADOS | Luiz Felipe Leprevost
Editora: Arte & Letra;
Tamanho: 112 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2015.