O luto, em uma primeira medida, é uma reação à perda: um sentimento de impotência diante da ausência. O sujeito, explica Freud, perde o interesse no mundo externo, exceto quando existe alguma ligação ao objeto perdido. E é a partir da experiência de perda que Tiago Ferro faz sua estreia na literatura. O pai da menina morta é um relato ficcional diante do luto, um manifesto de sobrevivência “aos que restaram”.
O romance percorre o sinuoso labirinto confessional de um pai que testemunha a morte da filha de oito anos. Nesse inventário da dor, Ferro cria um retrato da fragmentação e da confusão mental dos atingidos pela tragédia. Em O pai da menina morta, não existe chão. Todos flutuam ao redor do invisível como insetos em volta da lâmpada.
A morte é um ponto de partida para a vida, por meio de uma ressignificação forçada e dura. O narrador, cuja identidade se esvai diante da certeza de que será para sempre “o pai da menina morta”, busca se reconstruir embaixo dos escombros, mas todos os pontos de contato com o real se afastam, criando abismos diários e concretos. Tudo passa a ser relativo. Todos os personagens são chamados pelas suas funções – o médico, “Minha Filha”, “Minha Outra Filha”, “Professora de Yoga”, “Terapeuta Budista” –, menos a esposa, Lina, que comunga da mesma dor, embora se afaste simultaneamente ao avanço do desconsolo.
O luto passa a ser seu verdadeiro – e único – estado de espírito. Diz um trecho:
“Quando eu estou apenas calado, estou deprimido. Quando eu converso alegremente, estou tentado apagar o passado. Se eu tenho uma ereção, é uma compensação típica do luto. (…) Se eu cortar os pulsos, ou entrar embaixo de um ônibus em movimento, ou pular do Empire State Building, estava na cara que algo assim ia acontecer”.
Viver – ou ao menos tentar – se transforma em um atentado gravíssimo à memória da filha. Todos os passos dados em direção à normalidade o colocam frente à frente com os juízes do cotidiano: gente, como eu ou você, capaz de encará-lo com espanto e tristeza, esperando que jamais saia em definitivo dessa areia movediça.
Evangelho da falta
O Pai busca alívio em um grupo de apoio imaginário. Eric Clapton. Gilberto Gil. Drummond. Todos são seus companheiros de dor. Todos perderam os filhos e precisaram lidar com o vazio. Esse mesmo vazio foi o fio condutor de outros autores que decidiram tratar da perda. Julian Barnes, ao falar da morte da esposa em Altos voos e quedas livres, usou o balonismo como metáfora para os picos da vida. André Gorz, que viu sua mulher definhar ao longo dos anos, escreveu uma carta – talvez a mais bela mea culpa da literatura – para documentar a Dorine o que iria fazer quando partisse.
Sem fazer nenhuma concessão, O pai da menina morta explora o desespero e a apatia, a alegria e o descompasso.
Os caminhos tomados pelo britânico e pelo francês são menos íngremes: ambos usaram de certa poesia para emular o luto. O brasileiro se apropriou, com rigor e maestria, do estado conflituoso de mente e espírito para compor um verdadeiro evangelho da falta. Sem fazer nenhuma concessão, O pai da menina morta explora o desespero e a apatia, a alegria e o descompasso. O leitor percorre as mesmas rotas de fuga do narrador, as mesmas trilhas que levam ao despenhadeiro e as mesmas escolhas afetivas. Logo de início o escritor cria um romance que é impossível passar incólume:
“Sempre uso camiseta, jeans e tênis. Sinto pena dos homens elegantes. Como se não bastasse colocar e tirar tantas máscaras sem parar, ainda desperdiçam tempo com o figurino. Prefiro me concentrar no roteiro.
A Minha Filha morreu no dia 26 de abril de 2016.”
O pai da menina morta não é um romance sobre o remorso e a culpa, também não se debruça sobre a remissão da pena, mas é uma tentativa franca e corajosa de tentar encontrar a felicidade nos espaços em branco.
O PAI DA MENINA MORTA | Tiago Ferro
Editora: Todavia;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Março, 2018.