O nazismo é um tema recorrente em todas as esferas da vida social. Parece que, para sempre, estaremos condenados a refletir sobre esta dúvida: como foi possível que tantos sujeitos tenham afiançado ideias nazistas, ou simplesmente tenham convivido com estas atrocidades sem fazer nada?
São perguntas que provavelmente permanecerão sem resposta, não importa quantos anos passem. A elas, se somam mais estas questões: como o mal, em sua forma tão crua e pura, pode se instalar entre nós? E depois de vermos a face do que pior que existe, há como seguir em frente?
Todas estas indagações montam o pano de fundo para o romance Uma Tristeza Infinita, do escritor gaúcho Antônio Xerxenesky, e funcionam como o mote perfeito para falar de outro tema que permanece insolúvel: os mistérios em torno da saúde mental – em especial, da depressão – e por que certas pessoas costumam ser mais impactadas pelo sofrimento do que outras. As indagações dão margem a um romance potente e profundo, capaz de desestabilizar algumas certezas do leitor.
A trama de Uma Tristeza Infinita gira em torno de um casal. O psiquiatra francês Nicolas muda-se com sua mulher, Anna, para um vilarejo na Suíça, por conta de uma oportunidade de trabalhar em uma clínica que recebe pacientes traumatizados após a Segunda Guerra Mundial. Anna, por outro lado, deixa um pouco de lado suas aspirações profissionais para acompanhar o marido em uma vida erma, em um país extremamente gelado.
A grande beleza do livro de Antônio Xerxenesky está na forma em que ele consegue tensionar tantos temas relevantes e extremamente atuais – ainda que a obra se situe no pós guerra.
Na Suíça, Nicolas terá que tratar de sujeitos que vivenciaram situações horríveis e que parecem carregar em si uma quantidade maior de tragédia do que qualquer um pode suportar. O aparato metodológico usado pelo médico para buscar alguma cura a estes pacientes é o tratamento pela fala desenvolvido por Sigmund Freud, que marca oposição aos métodos selvagens usados anteriormente, como a terapia por eletrochoque.
Junto aos demais psiquiatras da clínica, ele se posiciona enquanto um homem da ciência, que intenta usar as ferramentas mais modernas e eficientes que existem para auxiliar estes indivíduos em profundo sofrimento.
Contudo, ele logo tem suas convicções confrontadas com o surgimento de tratamentos psiquiátricos medicamentosos que prometem observar as doenças mentais agora sob seu aspecto químico, o que parece um tanto escandaloso. Poderia um remédio ser mais eficiente do que esta autoanálise ensinada por Freud?
Por outro lado, Nicolas passa por situações indesejáveis em sua própria vida: cada vez mais ensimesmado, ele se sente um tanto afastado de sua esposa. Ela, por sua vez, tem vontade de se reaproximar pelos estudos da física. Para completar, o próprio psiquiatra se vê aos poucos sendo consumido pela melancolia que afeta os seus pacientes.
‘Uma Tristeza Infinita’: a insustentável cisão entre razão e inconsciente
A grande beleza do livro de Antônio Xerxenesky está na forma em que ele consegue tensionar tantos temas relevantes e extremamente atuais – ainda que a obra se situe no pós guerra. Os conflitos enfrentados por Nicolas se fundem com sua vida e talvez permaneçam ainda hoje sem resposta. O que há em certas pessoas que fazem com que consigam seguir em frente após testemunhar a barbárie? E é possível superar à simples existência na terra de acontecimentos tão horríveis quanto o nazismo?
Mesmo sem qualquer menção à realidade do Brasil, fica clara a conexão com o que o Brasil enfrenta, em um cenário em que o bolsonarismo e os discursos colados nele foram endossados por milhões de pessoas por meio das urnas. Os sofrimentos vividos por pacientes na Suíça dialogam sem dúvida com aquilo que vivemos: como é possível compartilhar o mesmo espaço e tempo que gente que defende o direito ao ódio e à violência?
O grande enigma é entender por que alguns seriam mais suscetíveis a estes fatos do que outros. Em certo momento, Nicolas diz aos colegas: “nós estamos tratando aqui pessoas que passam por combates violentos, pessoas que perderam entes queridos na guerra, pessoas que vivenciaram o fascismo dominar seu país… e desenvolveram uma enfermidade mental. Mas quantos heróis de guerra não cantam suas vitórias, não exibem suas medalhas?”
Aparece, de maneira muito evidente aqui, que Xerxenesky quer, a partir de sua própria experiência como paciente (conforme ele revela em entrevistas sobre o livro), discutir temas que acometem cotidianamente os que compartilham de algum sofrimento mental. Será que atravessamos a vida estando à mercê dos processos químicos em nosso cérebro?
A tensão entre subjetividade e objetividade, ciência e espiritualidade, mente e inconsciente corta esta narrativa tal como uma navalha afiada. Ao ser confrontado pelos avanços científicos que surgem, colocando à prova tudo o que ele aprendeu até então, Nicolas divaga: “como traçar a linha que separa a mente do organismo físico do cérebro? Deve ser perigoso, pensou, acreditar que toda a nossa realidade é produto da mente. Tão perigoso, pensou, quanto achar que tudo está concretamente ali e pode ser medido e calculado, e nada está em nossa mente”.
Tal como todos os bons romances, Uma Tristeza Infinita mais provoca que traz respostas, e segue vivo na mente do seu leitor por uns bons dias.
UMA TRISTEZA INFINITA | Antônio Xerxenesky
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 256 págs.;
Lançamento: Setembro, 2021.
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