A escolha de Elizabeth Bishop (1911 – 1979) como autora homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) é um equívoco. Para além da sua opinião sobre o golpe militar de 1964, a poeta norte-americana, que viveu no Brasil por 15 anos, seja talvez uma opção mais óbvia para um momento de conservadorismo e aliança política com os Estados Unidos. Um evento que já estampou a literatura marginal – na figura de Ana C. (1952 – 1983) –, a transgressão – pela escolha de Hilda Hist (1930 – 2004) – ou mesmo a investigação social – ao trazer à tona a obra de Euclides da Cunha (1866 – 1909) –, dá a impressão de ter abandonado seu caráter combativo e parece ter se transformado, literalmente, em uma festa para inglês ver.
A opção por uma autora estrangeira soa estranho, mas ainda mais esdrúxulo é a escolha de alguém cujas visões sobre o Brasil não consigam criar um diálogo, uma ponte que ligue a nossa cultura a coisa alguma. Acho, sem qualquer dúvida, que a Flip poderia, caso realmente fizesse questão de homenagear um estrangeiro, por que não um escritor ou uma escritora latino-americanos? Opções não faltam.
Chile
De cara, escolher a Nobel chilena Gabriela Mistral (1889 – 1957), que também viveu no Brasil – na mesma Petrópolis que abrigou Bishop – e que acaba de ser publicada pela editora curitibana Olho de Vidro, poderia criar um movimento de redescoberta e valorização da obra, fortalecendo a relação com os hermanos da terra de Roberto Bolaño (1953 – 2003), que seria também outro nome forte.
Pablo Neruda (1904 – 1974), mais um Nobel – e supostamente assassinado pelo regime militar de Pinochet –, resgataria a importância da poesia como literatura e reforçaria o caráter subversivo da Flip, discutindo não apenas as letras, mas também a política que tanto percorreu a vida do autor de Cem poemas de amor.
Uruguai
Outro transgressor, o uruguaio Mario Benedetti (1920 – 2009), seria uma figura certeira para discutir questões-chave da América Latina, como as ditaduras, o exílio, a inadequação fora do seu próprio país, as relações entre os escritores latinos e a literatura como (tentativa de) um retrato realista.
Juan Carlos Onetti (1909 – 1994), autor uruguaio cuja obra ainda passa desapercebida por aqui, foi um dos grandes escritores de sua geração e criou um universo particular – a cidade Santa Maria – como metáfora dos vícios e virtudes do sujeito moderno.
Mario Levrero (1940 – 2004) demorou a chegar por aqui. Sua literatura, inventiva e fantástica, chegou a ser publicada na coleção “Otra língua”, organizada pelo escritor Joca Reiners Terron, mas só com o lançamento d’O Romance luminoso ano passado é que os olhos do público e da crítica no Brasil se voltaram para ele.
Argentina
Vivemos uma falsa rivalidade com os argentinos – construída mais pela bestialidade dos campos de futebol e menos por qualquer peleia entre os países, nesse ponto a briga da Argentina é com o Chile, que abasteceu o exército britânico durante a Guerra das Malvinas (1982). Ainda assim, os escritores argentinos são os que mais figuram nas prateleiras do leitor brasileiro.
Se a ideia é discutir um grande escritor cujas ideias políticas destoam da genialidade de sua produção literária, Jorge Luís Borges (1899 – 1986) – que, supostamente, não teria levado um Nobel por seu apoio a Perón, embora depois tenha se arrependido de defender o presidente portenho – seria uma excelente pedida.
Julio Cortázar (1914 – 1984), cuja reedição d’O Jogo da amarelinha é um chamamento para debater novamente a sua obra, convida a colocar na mesa temas parecidos aos de Benedetti, ainda que a discussão pudesse caminhar pela literatura fantástica. Copi (1937 – 1987), autor marginal e vítima da AIDS, muito próximo da experiência de transgressão de Hilda Hilst, poderia convidar a Flip a pensar a homossexualidade a partir da literatura e, claro, a literatura como esclarecimento contra a ignorância.
Nomes e países faltam nessa lista que é, antes de tudo, mínima, mas que serve para apresentar um panorama básico para entender a importância de pensar o Brasil e seus artistas como parte de um imenso universo – a América Latina – em um momento em que a identidade nacional escorre por um ralo denso e, à primeira vista, às raias de ser um poço sem fundo.
Por outro lado, Ricardo Piglia (1941 – 2017) é, como Borges, um autor enciclopédico. A diferença, entretanto, é o seu foco na literatura de país, no olhar aprofundado sobre aquilo que foi e estava sendo feito em seu país. Piglia, ademais de um grande investigar literário, produziu uma obra vastíssima, de romances a contos, ensaios a memórias – os belíssimos Diários de Emílio Renzi, que escreveu desde os 16 anos.
Silvina Ocampo (1903 – 1993) chegou há pouco no Brasil. Sua obra-máxima, A Fúria e outros contos, ganhou sua primeira tradução por aqui. Escondida por seus amigos mais famosos, como Borges, sua irmã Victoria e o marido, Bioy Casares, Silvina é um dos nomes mais interessantes da literatura portenha, uma pérola recém-descoberta que passeia pela literatura fantástica e pelas vanguardas.
Alejandra Pizarnik (1936 – 1976), assim como Ana C., tirou, ainda muito jovem, a própria vida. Uma das mais importantes poetas argentinas, sofreu no mesmo mal que Silvina: permaneceu inédita no Brasil por tempo demais. Dona de uma poesia recheada de beleza e singularidade, Pizarnik explorava as angústias do cotidiano e que fazia dos seus poemas um grande questionamento sobre o que é estar vivo.
Colômbia
Gabriel García Márquez (1927 – 2014), um dos nomes mais importantes e dos mais conhecidos no mundo, além de vencedor do Nobel, foi um dos responsáveis pelo boom da literatura latino-americana e que trouxe no seu rastro uma miríade de autores que ajudaram a formar a cena literária no continente.
Publicado no Brasil pela Rádio Londres, Andrés Caicedo (1951 – 1977) foi uma verdadeira revolução na literatura colombiana. Morto muito jovem, o escritor fez de Viva a música! – uma viagem lisérgica por Cali – a sua obra-prima e, ao mesmo tempo, explorou com poucos a ideia de rebeldia e liberdade.
Em Álvaro Mutis (1923 – 2013), quem sabe, resida uma das opções mais interessantes. Menos canônico que Gabo e menos subversivo que Caicedo, Mutis é uma espécie de descoberta gloriosa. Vencedor de prêmios como o Cervantes e o Príncipe das Astúrias, seus livros A Última escala do velho cargueiro e A Neve do almirante estão em catálogo pela Record.
México
Pensar a literatura mexicana é, antes de tudo, discutir Octávio Paz (1914 – 1998) e Juan Rulfo (1917 – 1986). Se o primeiro possui uma produção vasta, capaz de criar inimigos – Bolaño –, Rulfo viveu como Raduan Nassar: escreveu pouco, mas o suficiente para que a literatura fincasse raízes como uma investigação da cultura do México e das origens do fazer literário no país.
Carlos Fuentes (1928 – 2012) foi parte do movimento do boom latino-americano e representa, graças à sua itinerância pelas capitais latinas – e aí está incluído o Rio de Janeiro –, umas das vozes mais polivalentes do continente. Dono de uma técnica narrativa ímpar, Fuentes foi um analista da política latina e um grande defensor de uma identidade continental.
Sem qualquer exagero, nomes e países faltam nessa lista que é, antes de tudo, mínima, mas que serve para apresentar um panorama básico para entender a importância de pensar o Brasil e seus artistas como parte de um imenso universo – a América Latina – em um momento em que a identidade nacional escorre por um ralo denso e, à primeira vista, às raias de ser um poço sem fundo.