Quando morreu no ano passado, Philip Roth (1933 – 2018) foi saudado como aquele que merecia o Nobel e jamais levou. Toda a sua obra está voltada ao escrutínio da hipocrisia – principalmente dentro das comunidades judaicas – e da derrocada dos sonhos da juventude. Seus personagens amadurecem primeiramente pela dor e depois pela experiência. Alexander Portonoy, personagem icônico do polêmico O Complexo de Portnoy, que o diga. Entretanto, talvez nenhuma outa de suas criações tenha experimentado a danação com tanta potência quanto Lucy Nelson, em Quando ela era boa (Companhia das Letras, 2018; tradução de Jorio Dauster), romance lançado em 1967 e publicado por aqui somente cinco décadas mais tarde.
Lucy, a única protagonista de Roth, encarna a mulher – ou a geração de mulheres – que se formava no pós-guerra: idealista, porém, atrelada a um marido – no caso, Roy – ainda embebido nas tintas dos pais de seus pais. Ela é fruto de uma família que, apesar de soterrada pelo alcoolismo do patriarca, se vê obrigada a manter-se unida e sólida, como se todas as peças e engrenagens ainda se encaixassem e pudessem funcionar normalmente. Lucy oscila entre aquilo que se espera de uma mulher e o que ela própria deseja fazer de sua vida.
Essas são temáticas recorrentes nos livros de Roth – Indignação e Pastoral americana, por exemplo, também lidam com essas questões –, mas que nunca foram tratadas diretamente pelo olhar feminino. Para um autor que, por anos, foi chamado de misógino, Quando ela era boa carrega, mesmo que tardiamente, um quê de redenção. “Lucy Nelson é uma adolescente furiosa que quer uma vida decente”, disse à The Paris Review quando perguntado a respeito dos ataques que sofria, e continua: “ela é apresentada tão bem quanto o seu mundo e sua consciência de ser melhor. Ela é confrontada por homens que exemplificam tipos profundamente irritantes para muitas mulheres. É a protetora de uma mãe passiva e indefesa, cuja vulnerabilidade a leva à loucura”.
A tal loucura é muito mais uma metáfora para a sensação intermitente que Lucy carrega de não se sentir pertencente a nada do que uma necessidade premente de uma camisa de força. Lucy personifica todas as inseguranças e incertezas que um jovem pode ter e que são agravadas pela gravidez indesejada e pela manipulação que sofre dos pais, do namorado/marido e dos amigos. Roth cria uma espécie de duelo de interesses cujo ápice é um arremate explosivo de cinismo e petulância de Roy e de Julian, seu tio. Em um pequeno parágrafo, Philip Roth oferece ao leitor uma mulher com muitas dimensões, com profundidade e complexidade próximas do que se pode chamar de real:
“Lucy cruzou os braços cruzou os braços sobre o colo por cima do casaco; tinha que esperar até ter certeza de que a sua voz não falharia. ‘Desde que eu possa fazer o que vim aqui fazer, e depois vá embora, não há razão para entrar em nenhuma discussão… Por mim está ótimo’.”
Quando ela era boa é sutil ao expor a matriosca que forma qualquer comunidade. Os conflitos são sempre intensos e levados à beira do abismo, como se fosse sempre imprescindível observar de perto as consequências das ações mais ínfimas. Novamente, algo típico de um autor capaz de romper com o verniz dos mais diversos grupos sociais.
Seus personagens amadurecem primeiramente pela dor e depois pela experiência. Alexander Portonoy, personagem icônico do polêmico O Complexo de Portnoy, que o diga.
Lição
Passados cinquenta anos, a queda do muro de Berlin, duas guerras no Iraque, o ataque às Torres Gêmeas e o ressurgimento de movimentos conversadores, os problemas levantados por Roth em Quando ela era boa parecem bem atuais. O espelhamento entre as duas épocas é assustador. A paranoia de uma dominação da esquerda – que mais tarde seria o plot de Casei com um comunista – é revistada em 2019. O papel da mulher dentro da sociedade é novamente questionado, a ideia da segregação racial tem voltado à tona – como na marcha em Charlottesville – e se torna outra vez uma ameaça real.
Como uma espécie de profeta, em 2004, quando um novo governo de Bush filho se anunciava, Roth imaginaria um Estados Unidos fascista em Complô contra a América, romance em cuja trama o aviador Charles Lindbergh, notório apologista do Terceiro Reich, é eleito presidente do país. Não é muito diferente do que vê na figura de Trump – que nunca expressou diretamente simpatia por Hitler, embora pareça compartilhar certas ideias e ideais. O que diferencia ambos, segundo Roth em uma de suas últimas entrevistas ao The New York Times, é o fato de que Lindbergh, ao fazer o primeiro voo transatlântico em 1927, se tornou um herói nacional. Para o escritor de A Marca humana, havia, em certa medida, coragem no feito. “Trump, em comparação, é uma grande fraude, a soma do mal de suas deficiências, desprovido de tudo a não de ser uma ideologia vazia de megalomania”, disse.
Roth não faz de Quando ela era boa um exercício de política ou uma especulação sociológica, mas não consegue fugir à tentação de colocar em palavras os absurdos de uma mulher constantemente em fuga. A mulher em questão – a inspiração para Lucy – seria Margareth Martinson, primeira esposa de Roth, que o teria obrigado a casar, seguindo os padrões morais para a época, por estar grávida. A gestação, como conta a biógrafa Claudia Roth Pierpont, não passou de uma trapaça e o escritor, que estava metido em um casamento indesejado, agradeceu quando a mulher morreu.
À parte os mitos e as lendas que envolvem essa história, Quando ela era boa é um caminho interessante pelo qual Roth jamais percorreria novamente, entretanto, não sem deixar uma lição logo na primeira frase: “Não ser rico, não ser famoso, não ser poderoso, nem mesmo ser feliz, mas ser civilizado — esse era o sonho de sua vida.” Em tempos sombrios, ser civilizado é um aprendizado útil, importante e indispensável.
QUANDO ELA ERA BOA | Philip Roth
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Jorio Dauster;
Tamanho: 352 págs.;
Lançamento: Junho, 2018.
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