Segundo matéria da Folha de São Paulo (leia aqui), a partir de matéria da BBC, o Distúrbio do Colapso da Colônia (Colony Collapse Disorder – CCD) é uma síndrome ainda bastante misteriosa que faz com que milhares de abelhas desapareçam de suas colônias, desestruturando o funcionamento normal de uma colmeia e matando a colônias por inteiro. Os motivos aventados para tal distúrbio são diversos, desde o uso de agrotóxicos até o descontrole ambiental, a monocultura e problemas com parasitas que fazem adoecer as abelhas.
Em uma série de artigos sobre o desaparecimento das amarelinhas, o site Ideias na Mesa, da Universidade de Brasília, traz índices preocupantes: dependendo da região, a perda de colônias pode chegar a 90%. E o que parece algo que não nos afeta é mais catastrófico do que se imagina, pois as abelhas são responsáveis pela polinização das plantas e, por conseguinte, sua reprodução e produção de alimentos.
Esse é o gancho ao qual a norueguesa Maja Lunde se agarra para escrever o delicado Tudo que deixamos para trás, com tradução direta do norueguês de Kristin Lie Garrubo para a editora Morro Branco. O livro, laureado com o Prêmio dos Livreiros da Noruega de 2015 e com direitos vendidos para mais de 25 países, usa como pano de fundo o mundo da apicultura e também o mote do CCD, mas na verdade é uma ode despretensiosa à família, sobretudo à força muitas vezes oculta das mães e o desespero dos pais frente à prole.
É uma das funções (se é que existe uma) da literatura: nos faz perceber o mundo e olhar as coisas de maneiras completamente diferentes.
A história das abelhas ou ‘Tudo que deixamos para trás’
“A história das abelhas” seria o título original do livro, pelo qual ficou conhecido na maioria das traduções mundo afora, porém, o título brasileiro foi uma escolha acertada, junto com a capa que mostra a pintura realista de uma abelha caída envolta por heptágonos amarelos formando favos. E já, já explico o porquê.
Parte romance realista, parte distopia, por retorcer alguns fatos históricos e também nos levar até 2098, Tudo que deixamos para trás consegue nos convencer, e até mesmo nos deixar um tanto preocupados, quanto ao destino das abelhas no mundo. Inclusive, durante a leitura, uma abelha surgiu por aqui e eu fiz de tudo para que ela saísse do cômodo onde eu estava ilesa e feliz, pedindo para ela retornar à colônia.
É uma das funções (se é que existe uma) da literatura: nos faz perceber o mundo e olhar as coisas de maneiras completamente diferentes. Em outro momento, nem digo o que eu teria feito à pobre abelhinha.
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Durante as 477 páginas de Tudo que deixamos para trás, conhecemos três figuras muito distantes no tempo, mas ligadas pela apicultura, pela produção de mel e pelas próprias abelhas. A autora já nos arrasta de início para a China de 2098 para acompanharmos Tao, uma polarizadora profissional em um mundo quase apocalíptico. Ela serve ao governo chinês, polinizando manualmente as plantas e produzir alimentos para a população (não falei qual) como parte de um exército de polinizadores. Um retrato um tanto fiel do que hoje já é nossa sociedade de consumo, que explora os povos mais pobres para produzir bens destinados ao conforto dos mais ricos. Além dela, conhecemos também seu marido, Kuan, e o filho do casal, Wei-Wen, que terá um papel fundamental na história dessa mãe-leoa.
Poucas páginas depois, somos apresentados ao inglês William, que lá em 1852, em Hertfordshire, está acamado, sem perspectivas, com a família já à beira da penúria por conta de uma depressão que o atacou de forma impiedosa. Comerciante de produtos agrícolas, ele de repente cai em uma melancolia tremenda depois de um baque; mas esse baque não é profissional, e sim gira em torno de uma paixão do pai de muitos filhos: a apicultura. Mais adiante no livro conhecemos sua família numerosa, e alguns membros dessa família darão início à roda do destino que será a coluna vertebral da história.
E, por último, avançamos para 2007 e deparamos com o apicultor George, em Autumn Hill, Ohio, Estados Unidos. Ele é um apaixonado. Ama as abelhas, tanto que faz uma colmeia especial para elas, não compra de terceiros. Ama a mulher, Emma, que por trás de uma aparente fragilidade carrega os humores e sentimentos da família nas costas, equilibrando todo mundo. E ama seu filho, Tom, que saiu de casa para estudar jornalismo e, de certa forma, decepciona o pai, pois não quer seguir seus passos, os passos da produção de mel e da polinização.
Assim, está formada a trinca que nos levará por altos e baixos, e essa trama é toda fiada pela presença (ou mesmo a ausência) da Apis mellifera, ser de importância fundamental para os destinos do homem. Tanto na ficção como na vida real.
Família, família
Como disse lá na introdução da resenha, Tudo que deixamos para trás é uma grande homenagem à família. E também uma grande metáfora da busca das esperanças que vamos deixando no meio do caminho quando crescemos, ou mesmo quando perdemos algo de importante na vida, seja um amor, seja um ente querido, seja um trabalho ou mesmo uma possibilidade de mudança de vida. Às vezes, a perda é momentânea, e aí temos motivo de sobra para ter esperança. E às vezes a perda é definitiva, e o melhor que temos a fazer é usar o que nos restou – e muitas vezes nos resta mais do que perdemos, só que não conseguimos enxergar – para fazer o melhor e voltar a ter esperanças.
Parece até um pouco clichê, mas Maja Lunde consegue mostrar que ter esperança não é brega. Ter esperança não é ruim, ao contrário; muitas vezes é a única maneira de seguir em frente, mesmo diante das dificuldades. E essa sensação também deve ser creditada à tradução, que está bastante boa. Os poucos problemas de revisão não atrapalham a fruição da obra, e, sendo o primeiro livro adulto de Maja, conseguimos sentir que ela começou com o pé direito.
E, não se esqueçam: as abelhas foram, são e serão importantes para a vida na Terra.
TUDO QUE DEIXAMOS PARA TRÁS | Maja Lunde
Editora: Morro Branco;
Tradução: Kristin Lie Garrubo;
Quanto: R$ 35,00 (480 págs);
Lançamento: Novembro, 2016.