A humanidade não aguenta muita realidade, dizia T. S. Eliot. E não fosse a arte, concluiu Nietzsche, seria impossível suportar essa mesma parca realidade. Diante de um mundo em bancarrota generalizada – como uma falência múltipla dos órgãos – que lugar ocupa a cultura? Em Vamos comprar um poeta, o escritor, artista visual e cineasta português Afonso Cruz cria uma distopia satírica para investigar a relação das pessoas comuns com a arte.
Os afetos, os sabores, as relações. Tudo é contabilizado, precificado. “Crescimento e prosperidade”, dizem as pessoas “lucrativas” do universo erguido por Cruz. Sob as nuances dos conflitos velados, o autor escarafuncha o invisível. E é na figura da narradora, uma menina de 13 anos, que Vamos comprar um poeta sintetiza a esperança que ainda nos separa da barbárie.
Quando todos vivem à sombra dos números e da razão, e em um momento em que tudo – do corrimão da escada à pantufa – é patrocinado por uma grande corporação, o interesse abstrato parece um ato subversivo ao extremo e os artistas se tornam animais de estimação, comprados em lojas especializadas. Nesse jogo de absurdos, entre a decadência moral de Beckett e a decomposição individual de Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz coloca luz sobre a ideia de valor e sobre as possibilidades de valorar aquilo que não é concreto, porém, preenche os sujeitos em seu cotidiano.
O livro parece dialogar com esse mundo pandêmico em que estamos enfiados, entretanto, a pior doença não é um vírus que se espalha pelo ar, mas a ignorância que se alastra igualmente na surdina e que também mata.
Nessa matemática dos afetos, Vamos comprar um poeta é um tiro à queima-roupa. É uma exploração corajosa daquilo que ainda nos faz humanos, mas que está a escorrer entre os dedos. Esse é o tal processo de desumanização do outro, que transforma o diferente em uma mercadoria, uma troca escabrosa em um mercado bizarro.
Em alguma medida, o livro parece dialogar com esse mundo pandêmico em que estamos enfiados, entretanto, a pior doença não é um vírus que se espalha pelo ar – e que mata sufocados aqueles que estão à sua mercê –, mas sim a ignorância que se alastra igualmente na surdina e que também mata, mesmo que simbolicamente, todos os homens e todas as mulheres que se negam a olhar o outro.
Antítese
Vamos comprar um poeta é a antítese do Pessoa. Se para o homem de mil nomes, o fazedor de versos é um fingidor, na obra de Afonso Cruz é o único capaz portar um pingo de verdade. É na figura do poeta – que como os demais personagens não passa de uma sequência de números e letras – que a família pratica a revolução.
Como em Teorema, livro e filme de Pasolini, a chegada de um artista coloca a família burguesa em choque. É impossível manter a normalidade, seguir adiante como se nada tivesse acontecido. “A nossa vida mudou muito e eu também”, afirma a menina. E mudar e transpor a constância, a mesmice da vida vulgar que esperam que levamos.
VAMOS COMPRAR UM POETA | Afonso Cruz
Editora: Dublinense;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Março, 2020.