RuPaul é, sem sombra de dúvida, a drag queen mais famosa do mundo desde os anos 90, porém, é notável que sua carreira vive sua fase de maior sucesso na atualidade. Na década de 1990, com o hit “Supermodel (You Better Work)”, RuPaul era figura frequente em red carpets, fez participações em filmes, tornou-se amiga de Kurt Cobain e do Nirvana e teve seu próprio talk show no VH1. Em 2009, ela começou a apresentar o reality show RuPaul’s Drag Race, que segue no ar e que atingiu a sua marca de maior audiência em 2017.
Premiada com o Emmy de melhor apresentadora, Mama Ru tem trabalhado como nunca nos últimos tempos e isso fica claro pelo fato de cada vez mais ela aparecer em seu look masculino. Já que cada montagem de drag demora inúmeras horas, é compreensível que Ru, que já está quase chegando aos 60 anos, queira descansar de vez em quando. Enfim, em seu look masculino, podemos ver RuPaul Charles na série GirlBoss, da Netflix, porém, seu lado mais glamouroso pode ainda ser apreciado em seu novo disco American, lançado em março deste ano.
Em fevereiro, Ru lançou a coletânea Remember Me: Essential, Vol. 1, que traz remixes e releituras de algumas de suas canções antigas, como as clássicas “Supermodel” e “House of Love”, e algumas versões nunca lançadas, funcionando assim como uma modernização de alguns dos seus greatest hits — a ideia é lançar o Vol. 2 desse Essential ainda esse ano, porém, ainda sem data confirmada. Em março, por sua vez, RuPaul lançou American, seu décimo primeiro álbum de estúdio; trabalho que é produzido por Kummerspeck, em sua primeira parceria com a artista.
RuPaul trabalhou durante muitos anos com Lucian Piane, produtor com o qual, dizem os boatos, ela teria se desentendido nos últimos anos – de fato, o que sabemos é que Lucian esteve envolvido em inúmeros barracos virtuais, nos quais ele teve atitudes racistas, transfóbicas e violentas, o que gerou discussões sobre sua saúde mental. Porém, até o momento, são apenas especulações.
![Capa do novo disco de RuPaul, American](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/05/unknown-1489688700.png-300x300.jpeg)
Butch Queen, disco anterior de RuPaul, era produzido por Ellis Miah, Vjuan Allure and Matt Moss, e já apresentava algumas canções mais interessantes que os discos anteriores da artista. O fato é que nos anos 2000 os discos de RuPaul se fecharam dentro do nicho “música para o bate cabelo na balada” — não que isso seja algo negativo — mas o fato é que seus discos não eram realmente sólidos ou interessantes no todo. Eles possuíam bons singles, mas soavam repetitivos se ouvidos em sequência.
Butch Queen, por sua vez, parecia apresentar caminhos mais interessantes, mesmo assim, ainda soava meio bagunçado, talvez pela quantidade de produtores e de participações distintas, que davam essa sensação de muitas arestas abertas. American, por outro lado, apresenta-se como o álbum mais coeso de RuPaul desde Foxy Lady, de 1996; e não podemos negar que a presença de um novo e único produtor guiando todo o trabalho pode ter feito a diferença.
American, como o nome deixa claro, é um disco que fala muito sobre os Estados Unidos e cerca-se de patriotismo, reflexo claro do desapontamento de RuPaul com o resultado das eleições norte-americanas que elegeram Donald Trump. RuPaul sempre se mostrou extremamente patriótico, tanto que quem acompanha seu reality show já viu as inúmeras provas que incluíam mensagens sobre a liberdade de ser viver na América ou o respeito aos militares norte-americanos que lutavam na guerra do Iraque — na época, ela inclusive falava com orgulho sobre o fim da política do “don’t ask, don’t tell” que imperava nas forças armadas dos Estados Unidos.
O fato é que, após a eleição de Trump, RuPaul demonstrou em suas redes sociais muito desânimo e certa negatividade em relação ao futuro dos Estados Unidos. Contudo, sempre apoiando-se em frases de autoajuda, Mama Ru mudou seu discurso no início deste ano, deixando claro que ela acredita que anos de obscuridade política podem servir para que a arte e os artistas busquem novos caminhos de enfrentamento.
É de se esperar que as drag queens sejam parte fundamental de embate quando se pensa em um mundo que cada vez mais alinha-se a um pensamento conservador e retrógrado
Historicamente, sabemos que as drag queens sempre funcionaram como personas de choque e de questionamento, que interseccionam os gêneros e geram provocações. Por isso, é de se esperar que elas sejam parte fundamental de embate quando se pensa em um mundo que cada vez mais alinha-se a um pensamento conservador e retrógrado. Nesse sentido é que American se mostra importante e, talvez, o trabalho musicalmente mais relevante de RuPaul nos últimos anos, pois aqui ele encontra nos preceitos mais clichês da América — a terra da liberdade e da prosperidade — o ponto de partida para criar um álbum dançante, alegre, que passeia da música eletrônica ao hip-hop, flertando até mesmo com o country, para nos dizer “somos americanos e somos livres” como quem diz “não nos deixemos abater por nada”.
Tudo isso pode parecer conversa de autoajuda, mas a mensagem que “American”, a faixa-título, traz é fundamental: não podemos baixar a cabeça, é preciso seguir lutando por liberdade e direitos para todos. Em entrevista ao NewNextNow, Rupaul disse: “A canção ‘American’ é um abrir de olhos que nos remete ao que este país realmente representa, isto é, a vida, a liberdade e a busca pela felicidade. E eu acredito que é muito importante fazer isso agora. O que nós temos e o outro lado não tem é esse amor, esse espírito de dançar, rir e celebrar a vida. Esta é a nossa arma secreta, e este álbum é uma chamada de ação para que a gente lidere esse ataque e lute pela verdadeira democracia americana”.
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No final das contas, American funciona como um resumo da figura de RuPaul, pois estão aqui as canções de afirmação que ela sempre prega, vide “Spotilight”; as canções de fechação e performance, como as deliciosas “Kitty Girl” e “Charisma, Uniqueness, Nerve and Talent”; há também espaço para o lado mais gangsta de Ru, nos versos rápidos de “Call Me Mother”, talvez um dos melhores momentos do disco. “It An’t Over”, a faixa final de American, é um respiro de delicadeza, onde Mama Ru afirma que “best days are yet to come” e pede “so play that funky music / ‘cause there ain’t no way I’m going down”. American não é um disco genial, revolucionário, nem estará nas listas de melhores do ano, mas não deixa de ser um grande disco, que nos injeta um bocado de ânimo e nos diz, como um mantra, “não desista!”. Então, prepare o carão, a maquiagem e dê play!
PS: Durante o texto, não me prendi em usar ‘ele’ ou ‘ela’ para RuPaul, pode até ter ficado confuso, mas Ru não se importa com os pronomes de gênero, ele gosta mesmo é da confusão que uma drag queen pode causar.