O artista que iremos tratar nesta semana gravou três álbuns de estúdio em vinte anos. Parece pouco? No entanto, a partir deste material lançado, pode-se dizer que D’Angelo é uma referência capital para tudo o que se produz (e se produziu) na black music norte-americana desde então. D’Angelo conseguiu reinventar, durante essas duas décadas e três discos, a linguagem da R&B e do soul, incorporando a ela elementos da música contemporânea, como o hip-hop e a música africana.
O contato de D’Angelo com a música iniciou-se cedo, por influência da própria família – cujo pai era ministro Pentecostal. O piano foi o primeiro instrumento que ele aprendeu a tocar, aos três anos de idade. Após ter completado a maioridade, ganhado alguns concursos regionais e se destacado pela habilidade vocal e de composição, D’Angelo se mudou de Richmond (Virgínia) para Nova Iorque a fim de trabalhar como músico profissional. Lá, integrou uma banda de hip-hop chamada IDU. Uma fita demo deste grupo foi enviada para a EMI, e culminou com a contratação de D’Angelo como compositor para outros artistas.
Seu primeiro trabalho de sucesso foi a composição de “U Will Know” (aqui, temos o vídeo da música), do super e colaborativo grupo Black Men United. A música ficou conhecida por integrar e encabeçar a trilha sonora do filme A Face da Verdade. O mundo da música ficou interessado em saber quem era o compositor daquela bela canção, assinada por ele em 1994. No ano seguinte, D’Angelo aproveitava a boa impressão do single do Black Men United para lançar o seu disco solo de estreia, Brown Sugar.
Brown Sugar apresentava um artista consciente da sua musicalidade. O músico transitava pela soul music, R&B e hip-hop com uma facilidade invejável. Numa época em que a black music resumia-se a evolução do hip-hop e da pop music, o resgate do soul e do R&B foi preponderante para D’Angelo levantar uma bandeira e uma nova forma de lidar com as referências do passado. Deste modo, ele se tornou um dos precursores do movimento neo soul, que reunia artistas que propunham este diálogo com outros elementos musicais. Somam-se a ele Erykah Badu, Lauryn Hill, Raphaell Saadiq e Jill Scott.
Brown Sugar é um álbum impecável, detentor de uma linguagem acessível do ponto de vista comercial. Neste disco de estreia já estavam todas as características que surgiriam nos discos seguintes, marcas categóricas da sonoridade de D’Angelo: arranjos que intercalam samplers e instrumentos musicais, coral e a inconfundível voz do cantor flutuando pelo coral, às vezes juntando-se a outras vozes. E ele consegue empregar o falsete necessário para uma canção romântica, e em outro ponto é agressivo o suficiente para entoar uma canção de hip-hop. Temos no disco uma excelente versão de “Cruisin’ “, originalmente gravada por Smokey Robinson. D’Angelo torna a música tão soul quanto a original, mas com uma roupagem R&B contemporânea autêntica.
“Voodoo conseguiu emplacar bons singles na Bilboard, sendo duas canções as mais destacadas. ‘Send It On’ e ‘Untitled (How Does It Feel)’.”
Após cinco anos, D’Angelo lança o seu segundo disco, Voodoo. Em relação ao primeiro, o artista conseguiu potencializar todas as intenções musicais já existentes em Brown Sugar. O álbum é ainda mais hip-hop (casos das músicas “Devil’s Pie”, “Left and Right”), ainda mais romântico (“Send It On”, “Untitled (How Does It Feel)”, “The Line”), ainda mais soul e ainda mais experimental. Neste CD, as referências R&B e soul recebem também as influências étnicas que D’Angelo trouxe de Féla Kuti e dos Native Tongues. Difícil rotular músicas tão plurais quanto “Spanish Joint” e “Africa”. Mais uma vez, o cantor regravou uma música das antigas: “Fell Like Makin’ Love”, originalmente gravada por Roberta Flack, também ganhou uma roupagem R&B contemporânea.
Voodoo conseguiu emplacar bons singles na Bilboard, sendo duas canções as mais destacadas. “Send It On”, que D’Angelo compôs para o seu filho Michael, e “Untitled (How Does It Feel)”, que é uma música mais sexual, no melhor estilo “Let’s Get It On” do Marvin Gaye. Junte-se à letra lasciva um videoclipe em que o músico canta seminu (veja aqui) e pronto: virou símbolo sexual. A faixa em questão ficou nas paradas de sucesso por muito tempo, com o videoclipe passando exaustivamente na MTV (geralmente em horários mais avançados da noite), e a sua imagem ficou atrelada a essa música.
Na próxima semana, falaremos mais sobre D’Angelo. Como reagiria o cantor a essa exposição (sexual) de sua imagem? Por que ficou tanto tempo sem gravar um álbum de inéditas, haja visto Black Messiah ter sido lançado em dezembro de 2014? O que houve com a vida do cantor durante estes 14 anos sem uma nova obra? Por que Black Messiah e D’Angelo ainda são importantes para a black music e para a música internacional?
Até a próxima semana!