Desde a criação do Napster, em 1999, sedimentou-se o debate em torno do valor da música na internet. Esses novos caminhos do mercado apresentados por ela não eram novidade para Prince, que em 1994 já havia lançado no mercado um CD-Rom, que trazia um game e músicas inéditas; e que em 1998 já fazia pré-venda de seu disco de forma on-line. Prince, seja como for, é figura fundamental quando se discute o valor da música e as mudanças da indústria fonográfica durante nosso tempo, pois ele é precursor de estratégias que seriam usuais na carreira de gente como Radiohead, Jay-Z e Kanye West, por exemplo, do mesmo modo com o qual ele soava ser uma pessoa reclusa, desvinculada da nova geração.
Atento às mudanças na mesma medida em que era afoito a ela, durante os anos 2000, Prince travou complexas batalhas com os sistemas de streaming e com o YouTube. Ora lançava disco e single no Spotify, depois retirava; ora defendia o Tidal e publicava clipe no YouTube, outra ora já processava uma mãe que publicou um vídeo de seu filho dançando ao som de “Let’s Go Crazy”. Toda essa relação conturbada foi resumida em uma linha do tempo pela Pitchfork, em texto que pode ser lido em português aqui. Falecido em abril de 2016, é passível de reflexão que seus familiares tenham liberado um catálogo tão amplo da carreira de Prince no Spotify em um tempo tão curto. Isso nos leva a dois pontos crucias:
1- Se está foi uma batalha e uma dúvida recorrente na carreira de Prince, não seria aproveitador lançar assim sua obra, sem uma reflexão maior sobre o que o artista gostaria após sua morte?
2- O Spotify possibilita agora que uma geração toda se conecte com Prince e tenha acesso a suas músicas. Mesmo se considerarmos os downloads ilegais, poucas pessoas iriam atrás de um torrent daqueles gigantescos da discografia do cantor sem antes ouvir alguma de suas faixas no YouTube ou mesmo assistir algum clipe, atitude que seria impossível, já que ele vivia em pé de guerra com o sistema de vídeos.
Enquanto celebramos o fácil acesso que teremos à obra de Prince, muita gente por trás está ganhando uma boa grana.
De certo modo, pode ser desrespeitoso com as escolhas éticas do artista, porém, em menos de dois dias, a faixa “Purple Rain” já foi ouvida mais de 25 milhões de vezes! Determina-se assim que a presença dele nessas plataformas era algo ansiado pelo público e, por isso mesmo, não podemos ser ingênuos: enquanto celebramos o fácil acesso que teremos à obra de Prince, muita gente por trás está ganhando uma boa grana, especialmente as gravadoras, e da forma que o artista mais desprezava. E aqui Prince nos leva novamente para uma discussão que retorna todo ano: o que está em jogo com esses novos modos de distribuição da música?
É um debate que já reverbera desde que o Radiohead lançou o In Rainbows, sob o preceito do “pague quanto quiser”, e que se intensificou com os serviços como Spotify, Deezer e Tidal. Esse debate traz inúmeros caminhos. Por exemplo: Lemonade, de Beyoncé, segue apenas no Tidal, como uma escolha da artista de respeito pela obra, por ela compactuar com as práticas do serviço de streaming do marido Jay-Z. Já Vulnicura, da Björk, até hoje não chegou ao Spotify, pois a islandesa ainda estava em dúvida sobre o lançamento virtual, já que ela acredita naquele sistema de “janelas de exibição”, do tipo que o disco deveria fazer sua caminhada primeiro de forma física, para depois aparecer no formato digital dentro da plataforma. Nesses dois casos, há de se ponderar que as artistas, mesmo assim, mantém todo o seu catálogo anterior disponível nessas plataformas e apenas buscam meios para seus lançamentos atuais.

Taylor Swift, por sua vez, tirou todo o seu material dos sistemas de streaming por considerar as formas de pagamento injustas. E sabemos que elas realmente o são, porém, isso se torna realmente crítico para artistas independentes, que não ganham praticamente nada desses sistemas. Uma artista como Taylor Swift recai numa seara mesquinha em que muitos artistas de grandes gravadoras se enquadram, pois estavam acostumados com um estilo de vida ostensivo, contratos suntuosos e cifras milionárias em suas vendas. E aí surge certa dúvida: Taylor realmente quer “proteger” sua obra ou só quer lucrar mais e mais? A internet gerou inúmeros memes em que ela mandava seus boletos de cobrança por aí, reiterando uma imagem de artista mais preocupada com o lucro do que realmente com uma propriedade intelectual em si.
Essas questões nos levam a algo mais profundo ainda: o formato do disco. Durante quase 50 anos, ele foi a forma mais comum de venda e de lucro, dando a entender que essa era a forma crucial de distribuir e consumir música. Porém, é preciso lembrar que esse formato começou a se estabelecer apenas na década de 1950, tendo a música existido durante séculos e séculos sem essa configuração. A internet e os serviços de streaming quebraram esse sistema de discos e isso assustou a indústria fonográfica, que em meio a crise, agora consegue lucrar muito bem com estes serviços, lucro que muitas vezes não é realmente passado para os artistas, e aí temos essa cruzada interminável entre artistas / gravadoras / serviços de streaming; e no meio disso tudo ficam os consumidores.
Foi nesse cenário que surgiu o Tidal, serviço que visaria pagar melhor os artistas, porém, cobrando, obviamente, mais do assinante. Mesmo com os lançamentos exclusivos de gente como Beyoncé e Nicki Minaj, o Tidal segue sendo um elefante branco na vida de Jay-Z, pois o sistema não conquistou o público desejado e virou alvo de piadas na internet. Além disso, o Tidal parece até limitar o alcance de algumas coisas, como por exemplo, o Lemonade, disco sobre o qual mais se falou do que realmente se ouviu em 2016.
Nesse cenário todo, retornamos a Prince, artista que sempre buscou formas de manter-se livre de amarras mesmo pertencendo à grande indústria. A carreira dele é marcada por essa eterna luta entre seus ideais artísticos e a grana, sendo ele uma referência crucial para qualquer artista que hoje em dia toma as rédeas de sua carreira de forma administrativa. Por isso tudo, por mais desrespeitoso e sanguessuga que possa soar a chegada de seus discos ao Spotify, é inegável que isso é extremamente positivo para os fãs de música.
Até que ponto retirar vídeos de fãs do YouTube é realmente uma luta pelo respeito à sua obra? Não querer seus discos nas plataformas de streaming é realmente querer uma valorização justa de seu trabalho ou é a ganância de ficar milionário com cada faixa lançada? Esse debate ainda permanecerá e é positivo que o façamos ao som de clássicos como Purple Rain, 1999 e Lovesexy, pois, fosse a vontade de Prince ou não, em 70 anos tudo isso será domínio público e só restará a arte.