O título de Vera (editora Todavia, 2024), o novo romance do escritor gaúcho José Falero, pode induzir ao engano: não se trata de uma ficção que gira em torno de uma mulher. Ao menos não apenas dela. A tal Vera que dá nome à obra é uma personagem entre tantos que habitam em uma vila na Lomba do Pinheiro, na periferia de Porto Alegre.
Ao mesmo tempo, faz total sentido que o livro de Falero – sem dúvida, um dos nomes mais talentosos da nova literatura brasileira, autor do brilhante Os Supridores – leve no título um nome de mulher. Vera opera como se fosse um carrossel em movimento, no qual giram as vidas de diversos personagens que habitam a miséria, mas que guardam algo em comum: são as mulheres que mantêm de pé todas as famílias que ali estão. Começando pela própria Vera, uma faxineira que cria como seu o filho da irmã e divide o mesmo quintal com a mãe, as quatro irmãs e seus respectivos filhos (que, claro, são mães solo).
Ali na periferia da Lomba do Pinheiro, todos circulam para lá e para cá, mas sempre em situação de subalternidade. Quando Vera está cuidando do filho da patroa, em um bairro de classe média, ela guarda em segredo um pouco de comida para o filho Vanderson e nutre uma raiva pelos sorrisos complacentes que a mulher lhe direciona. Mesmo sabendo que é explorada, além de assediada pelo patrão, Vera nutre um profundo afeto pelo filho dos empregadores, de quem cuida enquanto o seu está sendo cuidado do jeito que dá.
Mas se as mulheres são articuladas e sagazes, os homens de Vera são profundamente contaminados pela tal “masculinidade tóxica”. Isso se expressa, por exemplo, na realidade do porteiro Marcelo, cujas humilhações que sofre cotidianamente se transformam em revolta cega – e quase sempre direcionada contra mulheres que nada têm a ver com os seus problemas.
São elas, aliás, as vítimas preferenciais de ódios que deveriam ser canalizados em outros lugares. Elas são assediadas no trabalho, apalpadas nos ônibus, abandonadas pelos pais dos seus filhos, enquanto seguem executando seus afazeres, sem descanso. Os homens, na história de Falero, são quase todos condenáveis, pois engolidos pelo discurso invisível do machismo, da homofobia e da misoginia.
Mas há complexidade aqui, e a narrativa evidencia que estes sujeitos são algozes e vítimas, constantemente derrotados pelas circunstâncias. Em um dos momentos mais inspirados, um adolescente se pergunta como pode aqueles homens, que se mostram tão machos quando estão juntos, desejar mulheres de quem falam de maneira tão detestável: “a pergunta tinha saído de uma boca que parecia especializada em insultar as figuras femininas. Então gostar de mulheres implicava em comportar-se daquela maneira? Desrespeitá-las, humilhá-las, isso era gostar delas?”
‘Vera’: a periferia vista de dentro

No multifacetado romance do José Falero, as páginas são tomadas por uma grande quantidade de crianças criadas pelas avós, faxineiras, porteiros, adolescentes que almejam uma “carreira” no crime, e pessoas que vivem de bicos. Por meio de uma narrativa muito sofisticada – justamente por sua aparência de simplicidade – Vera é um romance cinematográfico, em que as cenas se alternam em cortes sutis enquanto adentramos na pele dos personagens.
Como em um bom filme, a “montagem” é realizada pela intervenção firme e precisa de um escritor com uma vasta gama de recursos, e que consegue amarrar todos os fios em uma única trama.
Explico. Há pelo menos 15 personagens que são suficientemente desenvolvidos para que sejam chamados assim, e cujas realidades nos são apresentadas por meio de seus universos individuais. Além de Vera, há o porteiro lunático que se vê como um homem genial e desvalorizado; o sujeito menosprezado que deseja conquistar Vera de alguma forma; os meninos humilhados pela polícia e que almejam entrar para o crime como uma forma de subir na vida e serem respeitados; o adolescente que se vê constrangido pelo discurso homofóbico que circula na Lomba do Pinheiro; o menino que vive pelado pois não há dinheiro para comprar roupas para ele.
Mas, como em um bom filme, a “montagem” é realizada pela intervenção firme e precisa de um escritor com uma vasta gama de recursos, e que consegue amarrar todos os fios em uma única trama, capaz de fazer o leitor prender o fôlego enquanto percorre ansioso as páginas para desvendar o futuro dos personagens.
São tantas histórias, e tão ricas, que Falero pensou a obra como um grande romance de formação que acompanharia o destino do menino Vanderson (leia aqui entrevista com o o autor), mas que acabou sendo transformado em uma trilogia (a segunda parte deve ser publicada em novembro de 2025 pela Todavia).
Para sorte de seus leitores, novembro está logo ali. Contundente e emocionante, Vera é mais uma das várias provas que inscrevem este escritor como um dos grandes talentos contemporâneos da literatura brasileira.
VERA | José Falero
Editora: Todavia;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Novembro, 2024.
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