José Falero está entre os nomes mais talentosos da literatura brasileira contemporânea. Contudo, o seu domínio da técnica da escrita – que o possibilitou trazer ao mundo obras marcantes, como o livro de crônicas Mas Em Que Mundo Tu Vive (indicado como obra literária obrigatória no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2025) e o premiado romance Os Supridores – quase nunca é a primeira coisa que se fala sobre ele.
Antes disso, o seu background, como um homem crescido na periferia de Porto Alegre e que já trabalhou como porteiro, assistente de obra e estoquista de supermercado, fez com que se associasse a ele os rótulos de “escritor negro” ou “escritor periférico”. Falero rejeita estes complementos à sua profissão, que, para ele, só possuem uma única utilidade: fazer com que mais pessoas acessem esses escritores e escritoras que, por muitos séculos, não tiveram a chance de ser lidos.
Em seu último romance, Vera, José Falero coloca mais uma camada à sua profícua obra, ao abordar a realidade complexa das mulheres na periferia, atravessada por questões do machismo e do racismo. Ele pontua no novo livro avanços técnicos em sua produção e credita boa parte das reflexões trazidas nele à influência da namorada, a também escritora Dalva Maria Soares, uma “feminista ferrenha”.
Nesta entrevista à Escotilha, o escritor gaúcho reflete sobre aspectos de sua nova obra e como o mercado editorial enquadra profissionais como ele.
Escotilha » O que chama a atenção em Vera, pra mim, é, em primeiro lugar, o protagonismo das mulheres em todas as histórias contadas. São elas que têm ação em todo o livro, enquanto os homens têm uma postura passiva ou apenas reativa. Mas, ao mesmo tempo, o romance consegue nos colocar na visão de mundo de cada um dos personagens, por pior que eles sejam. Queria saber quais eram as tuas intenções durante a produção do livro.
José Falero » Isso tem a ver com a forma que eu escrevi ficção dentro de cada gênero. No caso do meu livro de crônicas, eram histórias quase todas autobiográficas, e tinham um ponto de vista mais individual – que, no caso, era o meu mesmo. A mesma coisa acontecia nos contos, mas aí por outro motivo, porque no conto, pela questão de espaço, convém que não tenha múltiplos focos – então é um limitação da narrativa curta. No caso das narrativas longas dos romances (Vera e Os Supridores), é algo que tento desenvolver, a exploração de diversos pontos de vista. E eu tenho preferência por narrativas longas.
Porém, eu sou um cara que estou sempre buscando melhorar com as ferramentas que adquiro ao longo do processo. Por isso, tenho a impressão que consegui me superar um pouco no Vera em relação a Os Supridores. A narrativa em terceira pessoa é muito importante, pois é uma ferramenta para criar uma narrativa neutra.
Em Os Supridores, há uma surpresa final na narrativa, mas eu tento não dar pistas ao longo do livro, o que é possível por não haver a pessoalidade do narrador. É claro que não há nada neutro, mas em raros momentos o narrador fala a opinião dele. Mas eu tento aprisionar essa personalidade com a narrativa.
Mas veja que curioso: a terceira pessoa também possibilita que haja essa força quando é necessário que o narrador se imponha, pois na maior parte do tempo ela não apareceu. A outra questão é que, através dessa narrativa em terceira pessoa “neutra”, eu posso explorar a personalidade dos personagem.
No fundo, é uma falsa terceira pessoa. Quando aparece o Marcelo (personagem que protagoniza cenas de violência em Vera), quem está contando a história é o Marcelo e não eu. A voz da narrativa então serve para explorar a personalidade dele e entender o que ele está sentindo.
Evidentemente que, em alguns momentos, essa voz emite opinião. Por exemplo: tem certas coisas que Marcelo pensa que a voz faz questão de dizer que o que ele pensa é totalmente distorcido, embora na cabeça dele faça sentido. É quase como se essa voz fosse uma intermediadora entre o personagem e o leitor. Por isso ela não tem sotaque – ou, pelo menos, tem menos que as personagens.
Quanto à questão das mulheres em Vera, eu tenho contado isso em todas as entrevistas que dou: minha namorada (a escritora Dalva Maria Soares), que é uma feminista ferrenha, chamou uma vez a atenção que eu tinha poucas personagens mulheres, e que elas ocupavam sempre uma posição secundária. Por isso, essa foi uma das minhas primeiras preocupações quando me propus a escrever o livro.
Eu costumo escrever a partir de demandas internas, pelos assuntos que estão borbulhando dentro de mim e que acho que são relevantes falar. Não escrevo por conta de demandas externas, como o que o público ou o mercado estão esperando. Pelo meu convívio com minha namorada, pensar em questões de gênero têm sido algo muito presente.

Li em uma entrevista tua que a ideia é tornar Vera uma trilogia, acompanhando o crescimento do menino Vanderson. Você poderia contar um pouco mais sobre esse projeto? São os seus próximos livros?
A ideia original era escrever um livro bastante grande para acompanhar a vida inteira do personagem Vanderson. Seria um romance de formação, mostrando ele na infância e as coisas relacionadas a gênero que o atravessam – em Vera, ele testemunha a violência no ônibus e a tragédia que acontece com a mãe dele –, depois a adolescência e a vida adulta. A ideia era acompanhar como se modela a masculinidade não só dele, mas de outros personagens em vários contextos sociais e raciais.
Vanderson, então, apareceria como uma grande exceção, pois ele se esforça para performar esse papel do machão, mas acha muito difícil. Por isso, o título original pensado originalmente para o livro era “Quase Homem”, pois ele não consegue, acha isso muito escroto. Decidimos então dividir esse grande livro em volumes, e Vera é o primeiro.
Senti uma certa separação entre Vera e Os Supridores por conta de uma espécie de “sotaque” na escrita. Vera parece que permeia um tom bem mais formal na narrativa, e a fala mais viva, com sotaque, aparece apenas nos personagens. Faz sentido?
Isso acontece, mas vou tentar explicar o motivo. Para começo, Os Supridores, quando foi publicado, já estava escrito há muito tempo, e tinha passado por várias versões. A primeira versão estava bem mais formal do que a que foi finalmente publicada: eu não usava a oralidade, com sotaque e gírias, em nada. Absolutamente tudo era escrito o mais próximo possível de uma linguagem formal.
Aí, certa vez, eu conversei uma noite inteira com um linguista da Bahia chamado Marcos Oliveira, o que trouxe interesse de me aproximar da oralidade no meu trabalho, especialmente nos diálogos. Fiz então uma outra versão de Os Supridores em que fazia esse contraste entre a narrativa entre terceira pessoa e as falas dos personagens.
Então isso existe nos dois livros. Mas o que é relevante notar é a grande diferença de tempo entre a escrita dos dois. Eu acho que hoje domino mais a linguagem formal. Nos momentos em que a narrativa em terceira pessoa de Os Supridores parecia menos formal, é porque saía do meu controle, não conseguia fazê-la ficar tão formal quanto gostaria.
Outro aspecto que notei em comum entre Vera e Os Supridores foi o ritmo: embora tenham questões densas, eles têm ação, muito movimento, que é engendrado a partir de vários e personagens em cenas, em uma linguagem algo cinematográfica. Queria saber quem te inspira na hora de escrever dessa forma, e quais são os desafios desse tipo de escrita.
Essas perguntas são sempre difíceis de responder, e podem dar margem a uma resposta muito imprecisa. Porque acaba que tudo nos inspira: a conversa que se tem com os vizinhos, com a família, nossa relação com os amigos, a vida social de modo geral, e não só os livros lidos, os filmes, as músicas… Na minha opinião, tudo isso vai formando a nossa maneira de produzir as coisas.
“Como tradicionalmente temos essa literatura elitista, excludente, existe uma demanda gigantesca reprimida e que está ali, adormecida há muitos anos, pela experiência social das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos trabalhadores”.
José Falero
É evidente que também dá para citar autores marcantes para mim, como Machado de Assis. Quando li Machado pela primeira vez, foi a primeira vez que tive a sensação de que era assim que queria que ficasse o meu texto, era isso que eu queria atingir. De modo geral, diria que tudo que vi e vivi me inspira. Pode ser uma resposta meio inútil, mas é a mais sincera que posso ter.
Minha namorada chamou minha atenção e que eu nunca tinha me dado conta. Eu tenho muitos interesses na vida, mas é muito dominante o modo que eu penso narrativa. É tão dominante que eu vejo isso em tudo. Estou conversando contigo, e a minha cabeça vai pensando em como eu descreveria essa cena em um livro.
Eu tenho um foco em como as coisas são contadas e procuro desenvolver a narrativa da forma que acho mais legal. Um progresso que acho que tive em Vera, em relação a Os Supridores, foi que eu queria que a história tivesse muitas linhas dramáticas.
Em Os Supridores, isso não acontece muito, embora estivesse tentando. Já em Vera, o leitor acompanha a história do porteiro, do menino que está se descobrindo gay, a do ônibus, então há várias histórias paralelas. Não tem um autor em particular que me inspira nisso: eu vi em séries de TV, livros que li. E é algo que aprecio muito e tento atingir.

Por fim, queria falar um pouco sobre a tua carreira e o destaque merecido que tuas obras têm tido nos últimos anos. Já li em entrevistas que você não tem interesse em se definir como um autor dentro de um categoria – como um escritor negro ou periférico. Ao mesmo tempo, as tuas obras refletem a tua vida na Lomba do Pinheiro e a tua trajetória. Então queria saber como isso se relaciona pra ti e quais os teus planos para a tua carreira literária.
O que eu quero para mim não tem muita importância, pois as coisas vão acontecer à revelia do que eu gostaria que acontecesse. Mas há dois pontos que dá para analisar. O primeiro é o que eu vou fazer com a minha escrita, já que isso quem decide sou eu: as ferramentas que vou tentar trazer para o meu texto, o quanto vou me empenhar… tudo isso depende de mim. E eu tenho ficado satisfeito por onde tenho conduzido a minha produção.
Como isso vai ser recebido, eu não tenho controle algum. Eu posso dizer o que eu gostaria que acontecesse, mas isso não é muito relevante. Agora, se eu não posso escolher como meu livro vai ser recebido, eu posso pensar sobre isso. E é isso que eu tenho feito, nas entrevistas que eu dou, tentando refletir sobre isso de maneira crítica.
Eu sempre dou uns exemplos que são muito óbvios. Quando se pega um autor brasileiro qualquer, branco, de classe média – que é, inclusive, o perfil histórico mais comum de escritores publicados no Brasil –, se for prestar atenção, ele não está falando sob hipótese alguma de uma experiência universal. Não se poderia jamais dizer que esse cara é só um escritor: ele é um escritor branco, que está falando de uma experiência social branca de classe média. Os personagens viajam, vão para a Europa, moram no Leblon… mas ninguém nunca diz que isso é uma literatura de apartamento, ou uma literatura burguesa. É só literatura.
Então não há nenhum motivo para dizer que minha literatura é negra e periférica. Essa então é uma reivindicação que eu faço, não no sentido de algo que pode se concretizar, mas como algo para o qual eu tento chamar a atenção: de que a literatura universal não existe.
Não existindo o universal, também não existe o sotaque. Na novela da Globo, por exemplo, o sotaque geralmente não é marcado, porque os personagens supostamente têm uma linguagem, que é vista como universal, mas que é a forma com que o paulista ou o carioca falam.
Há coisas específicas que foram transformadas em universal. É por isso que o que o homem produz é chamado de “literatura”, e o que a mulher produz é chamada de “literatura feminina”. Então se coloca rótulos nas coisas que são produzidas pelas minorias de poder que, na verdade, são a maioria em quantidade.
Mas penso que esses rótulos têm uma única utilidade. Como tradicionalmente temos essa literatura elitista, excludente, existe uma demanda gigantesca reprimida e que está ali, adormecida há muitos anos. A gente quer saber da experiência social das mulheres, e ninguém melhor para fazer isso do que as mulheres.
Há um país inteiro ansiando por essa literatura. O mesmo acontece com os negros, os indígenas, as pessoas que vêm da periferia, os trabalhadores… Ninguém aguenta mais ouvir falar do Leblon, do contexto de classe média branco. Então, quando o leitor consome algo que foge disso, surge a demanda para ler mais, e nesse sentido o rótulo pode ser útil. Ele só serve para isso, mas jamais para definir algo que não é exatamente literatura, e sim “literatura negra“, “literatura feminina”.
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