Dentre possíveis resultados da audição de Pure Comedy, novo álbum de estúdio do músico Father John Misty, um deles é a certeza de que não se trata de uma experiência reconfortante. O registro possui inúmeras camadas, muitas delas escondidas em suas treze canções, algumas mais na superfície, outras inseridas entre as estrofes do álbum. A advertência é necessária, já que em I Love You, Honeybear (2015), Father John Misty oferecia ao público uma espécie de poção terapêutica.
Não é só no Brasil que a política estremece as bases criativas da arte. Os Estados Unidos estão atravessando o período mais conturbado para além dos (vários) conflitos bélicos em que se envolveu ao longo de sua história. Na era da pós-verdade e de Trump na presidência, como a arte deve ser abordada e de que forma ela refletirá em nossas vidas?
Para o lançamento de Pure Comedy, Josh Tillman, o nome real por trás da persona Father John Misty, escreveu um ensaio de 1800 palavras, lançado junto com a faixa que dá título e abre o álbum, além de um curta-metragem com 25 minutos de duração, no qual trata a gravação do disco.
Na era da pós-verdade e de Trump na presidência, como a arte deve ser abordada e de que forma ela refletirá em nossas vidas?
Em Pure Comedy, Misty lança olhar para a sociedade em que está inserido, destilando uma série de críticas às qualidades depravadas dela, construindo um retrato obscuro e irônico. Sobram representações de arquétipos, a incompreensão com o distanciamento originado pelas ferramentas tecnológicas e outras rupturas causadas por este mundo confuso, em profundo colapso. O ouvinte mais atento notará que Misty deixa perguntas (e se faz outras tantas) direcionadas a este Estados Unidos atual, abrindo feridas e tocando em outras para que, propositalmente, elas exerçam, no mínimo, o papel de reflexão sobre quem somos, onde estamos e para onde queremos ir.
O disco é realmente ambicioso, alguns diriam petulante, mas é impossível dissociar a arte da vida em qualquer época, imagine em uma na qual nos encontramos absolutamente vulneráveis e limitados em nossa (e por nossa) humanidade. Pure Comedy marca, também, um rompimento estético e estilístico com sua discografia. Father John Misty opta por arranjos com um ritmo mais lento, entrando uma roupagem que flerta com o jazz através de saxofones e clarinetes, em clara oposição ao folk mais pop do álbum de 2015 e de Fear Fun, de 2012.
Leia também:
» A música pop se aproxima cada vez mais da música alternativa
» Em ‘Not Even Happiness’, Julie Byrne se fez gigante
Assinatura de Tillman, seu humor assume tom sarcástico no álbum. Seu interesse em colocar uma lente crítica nas relações contemporâneas (mas não amorosas), ideologias e conjunto de valores nos transporta a uma visão ligeiramente pessimista do mundo, e os pianos melancólicos completam a receita. O disco pode ser apontado como um manifesto, especialmente em faixas como “Leaving LA” e “So I’m Growing Old on Magic Mountain”, canções com 13 e 10 minutos, respectivamente.
Acostumados que somos a relatos que artistas fazem sobre suas relações com o espaço urbano e a cidade, o de Tillman sobre sua experiência insatisfatória de viver em Los Angeles é comovente e curioso. Além disso, é a cara deste Pure Comedy, que se esforça em oferecer mais perguntas do que respostas, mas não por falta de refletir sobre possíveis soluções.
No fim, Father John Misty consegue criar uma obra que dialoga com o ouvinte através de uma experiência sóbria de descrever as imperfeições de nossa vida moderna, tudo isso sem se levar a sério em demasia. Um grande álbum do nosso tempo.