Em abril de 1994, chegava ao mundo uma obra cultuada por tantos, e maldita para outros. Uma semana depois do suicídio de Kurt Cobain, a DGC Records lançava um grande disco: Live Through This, o álbum do Hole, banda capitaneada por Courtney Love, a detestada esposa de Kurt. E talvez por isso mesmo, o disco logo se tornou um ícone entre as riot grrrls, que simbolizavam um movimento punk feminista underground que se desenrolou no início da década de 1990.
Mas a fama impulsionada pelo acontecimento trágico, no entanto, não pode ser usada para apagar a força desse álbum, que conquistou e comoveu milhares de mulheres pelo globo já pela icônica fotografia da capa. A imagem – que é da fotógrafa Ellen von Unwerth – encontra inspiração no filme Carrie, com Sissy Spacek, para mostrar uma modelo (Leilani Bishop) vestida de miss e olhar meio maníaco. A foto representa uma espécie de sonho feminino (o de ser escolhida pela beleza), mas, para chegar nisso, a mulher parece destruída.
Essa imagem delicada e violenta encontrou eco em muita gente, e se associa claramente à potência das músicas desse disco. Depois de Pretty On The Inside, de 1991, em que embarcava no hardcore, em Live Through This, o Hole adentrava em um grunge bastante peculiar, que mesclava a brutalidade das guitarras com uma espécie de crônica suave sobre as muitas violências e mesmo sobre os desejos das mulheres.
12 faixas de um disco perfeito
Uma revisita a Live Through This mostra que ele segue insuperável como um disco que conseguiu reunir, de maneira magistral, a raiva e a potência das mulheres de uma época.
Os petardos iniciais do disco já são marcantes. “Violet” já nos apresenta os habituais gritos de Courtney Love (que faziam todo o sentido em 1994) para cantar versos como “you should learn where to go/ you should learn how to say no”.
A violenta música de abertura logo dá espaço para a melhor pérola do disco, a belíssima “Miss World”, em que Courtney nos esclarece que, mesmo com tantos excessos e vida desregrada, ela também quer ser uma miss: “I’m Miss World/ Somebody kill me/ Kill me pills/ No one cares, my friend” – os versos são embalados por uma melodia doce e comovente. A luta para ser bela, como esclarece a própria capa do disco, é ingrata e cobra um preço caro.
Em seguida, aparecem canções que entraram para o compêndio das grandes composições do universo riot grrrl, como “Asking for it” (que muita gente jura de pé junto ter sido escrita por Kurt Cobain). Trata-se de uma música forte em que uma mulher narra a sensação de ser abusada: “Every time that I sell myself to you/ I feel a little bit cheaper than I need to”. E arremata perguntando: “Was she asking for it?/ Was she asking nice?/ Did she ask you for it?/ Did she ask you twice?”.
A violência contra as mulheres segue ecoando nas outras faixas. Em “Jennifer’s Body”, há os pedaços do corpo de uma mulher, e em “I Think I Would Die”, há sugestão de aborto. Todos esses temas, contudo, vêm adornados por rosas, bonecas, glitter e outros adereços considerados femininos de maneira padrão.
A “fofura” continua sendo abordada em “Doll Parts”, uma das mais lembradas do disco pelos fãs. Nela, Courtney Love (cujo visual, misturando vestidos de bebê com um cabelo loiro sempre bagunçado, remete a uma boneca) descreve-se sensualmente como um objeto: “I am doll eyes, doll mouth, doll legs”. Mas as bonecas costumam ser destruídas pelas crianças – e também pelos homens. Talvez por isso, o refrão ecoe um desejo de vingança: “Someday you will ache like I ache”.
Live Through This encerra com chave de ouro com um hino chamado “Rock Star”. Para entender o quão poderosa é essa canção, uma dica: confira a cena em que a personagem de Liv Tyler canta essa música no filme Beleza Roubada, dirigido por Bernardo Bertolucci em 1996. Entendida como uma crítica amarga de Courtney aos movimentos feministas com os quais convivia e rivalizava em Seattle, sobretudo nos ambientes universitários, a música acaba configurando um envolvente grito (literalmente) das mulheres, como um anti-refrão que diz simplesmente “Don’t you please/ Make me real, fuck you/ Make me sick”. Uma pérola.
Após 30 anos de existência, uma revisita a Live Through This mostra que ele segue insuperável como um disco que conseguiu reunir, de maneira magistral, a raiva e a potência das mulheres de uma época. Mas, mais do que isso, sua mensagem segue válida e atual para as novas gerações – basta dizer que ele foi homenageado recentemente em fotos promocionais da cantora Olivia Rodrigo. Courtney Love, claro, causou e acusou Olivia de plágio. Uma eterna riot grrrl.
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