Orapper Criolo é um artista inquieto. Sobre Viver é fruto dessa inquietude, no mergulho mais profundo do artista em direção ao âmago do rap brasileiro. Desconsidere Ainda Há Tempo, ali era uma espécie de relançamento.
O músico fez rap, pop, samba e inúmeras baladas na última década. Mas a sensação é que havia certo deslocamento. Criolo é um músico sui generis e ser empurrado à canção de gênero que a indústria volta e meia tenta com ele gerava desconforto.
Fica a sensação de que ele decidiu vencer o “inimigo” de dentro, no melhor estilo Cavalo de Tróia. Seu trabalho relativamente frequente com Tropkillaz abre Sobre Viver com uma mensagem que vai neste sentido.
Contribuição de Tropkillaz em ‘Sobre Viver’ é marcante

Desde que passou a atuar em parceria com o duo Tropkillaz, Criolo inseriu muito mais trap em seu trabalho – e deu à sonoridade a mesma acidez que muitas de suas letras carregam.
A densidade conferida pelo trabalho dos DJs parece transformar a maneira como enxergamos os versos do rapper paulistano. Há mais ira, uma raiva que não deseja ser contida e, na verdade, precisa ser posta para fora.
Ao que pese ser uma boa adição às canções que o músico tem lançado, há sempre o risco da mimetização do próprio trabalho. Em Sobre Viver o trabalho foi equilibrado, mas também deixou a sensação de que a parceria está no seu limite.
‘Sobre Viver’ é um disco cru
Na primeira estrofe Criolo recita um “alguém” que dizia que ele ser um cantor de rap seria uma vergonha a seus pais, para na sequência emular a mesma pessoa que, com seu sucesso, mudou de ideia.
“O rap salva. O rap é o mundo. Esperança”. O rapper sobreviveu nessa mesma indústria que engole, mastiga, cospe, exaure, sabe o que tirar de você. O ritmo é vertiginoso, alucinado. Quando “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” começa, todos os planos do artista ficam escancarados.
A favela que Criolo canta é a mesma que passa fome nestes tempos de Bolsonaro. Neste instante há na minha memória o resgate de “O Beco”, canção de Os Paralamas do Sucesso. É um diálogo, sem dúvida, porque no mesmo “beco escuro” que “explode a violência” é onde “moleque sangra, moleque morre”. Haja amor, ódio e urgência, como cantava Herbert Vianna.
Criolo tem uma missão sempre que está de mão de seu microfone.
O rapper exorcissa a intolerância religiosa, ao mesmo tempo que retoma a crítica ao bolsonarismo encarnado na imagem de um cavaleiro templário. Criolo tem uma missão sempre que está de mão de seu microfone, suas mensagens tem destinatário – e por que não imaginar que algum deles sejamos nós?
Sobre Viver é um disco plural, mas também um registro de rap. Ele opta por beber tanto na fonte mais jovem com o trap ou quando convoca MC Hariel a dividir os microfones com ele, quando evoca “Jesus Chorou” numa singela trovoada.
O rap dos anos 90 é tão delicadamente presente que exige o reconhecimento de que havia algo antes de Criolo, Djonga e Baco Exu do Blues. Não é este jornalista quem diz isso, é o músico que colocou em 10 faixas uma mensagem, uma missão, um tributo, inúmeras críticas e muito talento.
Acredito que Sobre Viver não seja o melhor álbum do artista, mas é o mais cru. É o Criolo que esteve nos dois lados da gangorra que é ser um artista no sul do mundo, onde você precisa ser sempre mais um sobrevivente.
Participação de Milton Nascimento é um presente na despedida do artista

Enquanto Bituca está em sua turnê de despedida, ele se juntou ao rapper no estúdio para participar de “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão”.
Sua presença em Sobre Viver sobressai a todas as outras (mesmo que Liniker tem uma voz ímpar, sua participação é quase sublimada). A canção é um perfeito casamento entre as obras dos dois artistas, uma sinergia já vista em colaborações anteriores.
Particularmente, não é nem a melhor canção do LP, mas garante uma infinidade de plays em looping infinito. Porque nada é simples quando tem Milton Nascimento envolvido. Por essa, em específico, agradeço.
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