Cena I.
Quatro da tarde é quatro da tarde em qualquer lugar, mas às quatro da tarde de um dia ordinário desses, subi a rua Alfredo Bufren em direção à Praça Tiradentes. “Do lado direito da rua direita”, como diriam os Originais do Samba, eram quatro e pouco da tarde quando uma situação me faz parar e reduzir o ritmo da caminhada até minha casa para escutar tocando a todo volume no boteco da esquina da Bufren com a Riachuelo o seguinte verso: “nesse corpo meigo e tão pequeno/há uma espécie de veneno/tão gostoso de provar”. E continuava: “como pode haver tanto desejo/nos teus olhos, nos seus beijos/no teu jeito de abraçar”. Três clientes pingados entoaram o refrão: “e nada existe em você que eu não ame/sou metade sem você/mon amour, meu bem, ma femme!”. Risos e choros contidos, torresmo com cachaça. [highlight color=”yellow”]A sensação foi de que o tempo estava absolutamente parado naquele lugar.[/highlight]
Cena II.
Mais uma madrugada na rua Ermelino de Leão, um homem em caminhada solitária pára em frente ao letreiro em neon mais famoso da boemia curitibana e adentra o estabelecimento. À meia luz, atravessa as mesas ocupadas por casais apaixonados, grupos de amigos compartilhando alegrias etílicas, passa por outros homens solitários. “Eu hoje quebro esta mesa/se meu amor não chegar/também não pago a despesa/não saio deste lugar”. Na atmosfera de porão, três ou quatro passos pela pistinha no canto, vai até o tecladista da casa e pede uma nota: queria dar uma canja. Anônimo, ficou esperando a nota que não chegava, até que desistiu e sentou-se em uma mesa qualquer, reconhecido por um grupo com quem ficou bebendo, talvez comendo. Até que os seus seguranças particulares descobriram seu paradeiro, pagaram sua conta e o trouxeram de volta ao hotel. Nesse dia não houve canja de Julio Iglesias no salão do Gato Preto, mas foi por pouco.
Cena III.
Quando assisti Vou Rifar Meu Coração na Cinemateca, sozinha, estanquei na poltrona e fiquei até o final dos créditos e não ter mais ninguém na sala. Na saída, esbarrei com o senhor que fica na sala de projeções, eu e ele com um baita sorriso no rosto, eu preparada apenas para dar um tchau rápido e bem curitibano, quando ele soltou um comentário que abriu quase quarenta e poucos minutos de conversa: “Ahhh, bons tempos de Boate Azul…! Eu e minha mulher nos bailes dessa vida, bons tempos!”. Como bom toco de enchente que sou, fiquei lá perguntando as histórias do senhor que acabara de projetar o filme, e que ficara realmente mexido com aquelas histórias embaladas pelo suprassumo do brega brasileiro. Ele e sua mulher, a primeira e única namorada de sua vida, disse ele, adoravam sair pra dançar, mas em certo ano ela sofreu um acidente, ficou paraplégica e, mesmo assim, ele a levava toda sexta e sábado à noite para o mesmo baile, para mesma dança.
[tie_index]“Quem nunca foi traído, que atire a primeira pedra”[/tie_index]
“Quem nunca foi traído, que atire a primeira pedra”
Cenas como essas brevemente descritas acima, que em comum têm como trilha de fundo os maiores e menores sucessos da – desculpem a distorção da sigla – MPRB, “música popular ROMÂNTICA brasileira”, se repetem diariamente Brasil afora e de certa maneira conversam intimamente com a proposta do documentário Vou Rifar Meu Coração (2012), dirigido por Ana Rieper. O filme é uma literal viagem pelo imaginário romântico e erótico brasileiro a partir da obra dos principais nomes da música popular romântica, o brega. Brega com orgulho.
Letras de artistas como Amado Batista, Wando, Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano, Peninha, Lindomar Castilho – de quem a produção empresta o nome de uma de suas maiores canções – se transformam em crônicas dos dramas da vida a dois. Mas a grande narrativa não cai sobre o depoimento dos músicos entrevistados, e sim nos relatos de pessoas comuns e anônimas, que de coração machucado, nostálgico ou apaixonado, abrem ao espectador suas histórias mais íntimas e tristes, por vezes cômicas.
O filme é uma literal viagem pelo imaginário romântico e erótico brasileiro a partir da obra dos principais nomes da música popular romântica, o brega. Brega com orgulho.
A diretora faz um recorte do universo brega concentrando sua análise em Sergipe, onde morava na época das filmagens. A presença de Lindomar Castilho entre os artistas entrevistados gerou reações controvérsias pelo seu depoimento, que não foi exatamente contextualizado pelo filme. Em 1981, devorado pelo ciúme, Lindomar disparou cinco tiros contra a ex-mulher. Um deles atingiu a também cantora Eliane de Grammont, que morreu assassinada pelo então marido, e o cantor ficou preso por sete anos. Recluso no interior de Goiás, hoje diz em suas raras entrevistas que “não canta mais nem no chuveiro”. [highlight color=”yellow”]O filme analisa todas essas relações emocionais e irracionais de afeto, dominação, dependência e mágoa, nas quais a música brega, tão menosprezada e subjugada socialmente, tem um papel afetivo de maior importância.[/highlight]
[tie_index]A estigmatização do gosto popular[/tie_index]
A estigmatização do gosto popular
Nos anos 70, a música “popular romântica”, seus artistas e até mesmo seu público eram pejorativamente chamados pela crítica de “cafona”. Foi só a partir da década de 1980 que seriam tachados como “brega”, outra categoria que designava mau gosto, uma musica banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira; repleta de clichês e das mais melodramáticas construções que a linguagem simples permite.
Na margem oposta de movimentos musicais e artistas mais bem-vistos pela crítica especializada e por um público predominantemente originário de segmentos mais letrados da classe média brasileira, o brega, por sua vez, [highlight color=”yellow”]conversava olhos nos olhos com o povo.[/highlight] Sem entrar muito nos méritos da indústria cultural e fonográfica, embora os artistas classificados como “brega” vendessem milhares de discos, tinham pouquíssima autonomia e investimento para criá-los. Para a indústria, eles sempre estiveram inseridos na velha lógica de renovação e descarte acelerado. No documentário de Ana Rieper, um dos entrevistados (descubra quem é vendo o filme!) reclama que quando canta, é brega, mas na voz de Maria Bethânia fica chique. Outro diz que o problema é não ter o sobrenome “Buarque de Hollanda”. São algumas marcas de ressentimento do gênero musical, que como se não bastasse sofrer de amor, sofria também com certo menosprezo social.
O fato é que com todas as suas contradições, polêmicas e qualidade duvidosa, [highlight color=”yellow”]a música brega deixou marcas profundas no imaginário afetivo de parte do povo brasileiro[/highlight], e apesar de hoje muitas pessoas compartilharem uma valorização positiva desse cancioneiro, o brega vem sendo sistematicamente esquecido pela historiografia da música popular brasileira. Uma novela intensa e trágica, como qualquer canção de Reginaldo Rossi.
Se você estiver em Curitiba hoje e quiser adentrar um pouco mais neste mundo, não deixe de ver Vou Rifar Meu Coração, exibido no encontro deste mês do Conversas Sobre o Cinema Brasileiro. A sessão será às 19h, seguida de um debate no Cine Guarani (Portão Cultural). A entrada é gratuita.
[box type=”shadow” align=”” class=”” width=””]
SERVIÇO | Conversas Sobre o Cinema Brasileiro do LabEducine apresenta: ‘Vou Rifar Meu Coração’, sessão seguida de debate
Quando: 15 de setembro, sexta-feira, às 19h;
Onde: Cine Guarani – Av. Rep. Argentina, 3430 (Portão Cultural, andar subsolo) – Água Verde, Curitiba/PR;
Quanto: Grátis.
[/box]